«Descobrimento» do Porto Santo

Por ocasião das celebrações do Dia da Região Autónoma da Madeira, o presidente do Governo Regional anunciou, como quase certa, a deslocação do presidente da República à ilha do Porto Santo no 1.º de Novembro próximo, porque nesse dia irão «assinalar os 600 anos da descoberta e colonização do Porto Santo».

Deixemos a segunda questão, mas não secundária: a colonização do Porto Santo. Não sendo uma ilha habitada, por altura da ocupação portuguesa, devemos sempre falar em povoamento e não em colonização.
Mais importante é, contudo, tentar compreender a obsessão de alguns porto-santenses pelo 1.º de Novembro. Parece que foram os rotários locais que fizeram dessa data o Dia do achamento do Porto Santo, no que foram secundados pela Câmara Municipal, não há muitos anos.

Em que se fundamenta esta efeméride? Por diversas vezes, tenho feito esta pergunta publicamente, mas nunca me chegou resposta.
Qualquer pessoa tem o direito de festejar uma data da sua vida quando quiser, sem ter que apresentar o cartão do cidadão ou qualquer certificado. Mas uma data histórica, que envolve uma comunidade e apresenta objectivos cívicos e pedagógicos, requer documentação.

Com efeito, não se sabe, com certeza, a data da chegada dos navegadores portugueses ao arquipélago da Madeira, já conhecido e representado na cartografia da segunda metade do século XIV.

A historiografia, cruzando diversas fontes documentais, aponta os anos de 1419 ou, ainda melhor, 1420, como os mais próximos do acontecimento.

Jerónimo Dias Leite, seguindo uma fonte do século anterior, escreveu em 1579: «Partidos de Lisboa com vento próspero no mês de Junho, vieram demandar o Porto Santo, ao qual chegaram em poucos dias…»
Logo, para o primeiro cronista madeirense, o dito «achamento» ocorreu em Junho. Sublinhe-se que, pelos finais do século XV, Francisco Alcoforado indicara o mesmo mês.

Então, por que razão optaram os rotários porto-santenses pelo 1.º de Novembro?
Como, apesar da minha insistência nos últimos anos, nunca me responderam, vou tentar perceber a pretensa razão da escolha do Dia do achamento.

Parece que se socorreram, directa ou indirectamente, do relato de Alvise de Cá da Mosto [Luís de Cadamosto]. Este navegador veneziano visitou e descreveu o arquipélago da Madeira em 1455. Acerca do Porto Santo, afirmou: «Esta ilha é chamada Porto Santo, porque foi descoberta pelos portugueses no dia de Todos os Santos…»

Como ficou claro, Cadamosto, para explicar o significado do topónimo Porto Santo, associou-o a uma solenidade do calendário católico, o Dia de Todos os Santos, comemorado anualmente em 1 de Novembro.

O devaneio do veneziano nunca foi valorizado pelos historiadores, porque, muito simplesmente, a ilha já era denominada de Porto Santo, pelo menos cinquenta anos antes da viagem de Zarco e Tristão. Na realidade, o topónimo consta de mapas e crónicas desde a década de 1370. Cai, assim, por terra a fantasia de Cadamosto e também a de quem o quis seguir na actualidade.

Na História do Porto Santo há, porém, uma outra importante efeméride em 1 de Novembro. De facto, em 1446, nesse dia, foi assinada a carta de doação da capitania do Porto Santo a Bartolomeu Perestrelo. Todavia, a instituição da capitania corresponde a uma fase adiantada do povoamento da ilha e não serve para o tal dia do achamento.

Poderão os mais ingénuos invocar ainda a tradição, mas esta também se fabrica, de modo que nunca prevalece, face a uma fonte credível.

Em suma: que eu saiba, não há justificação histórica para a comemoração do Dia do achamento da ilha do Porto Santo em 1 de Novembro. Muito menos para falar em 600 anos em 2018, como, estranhamente, se tem feito, na senda da historiografia do século XIX.

Mais correcto seria festejar em Junho, com base na Relação de Francisco Alcoforado e na crónica de Jerónimo Dias Leite, fontes que, aliás, alicerçaram o Dia da Região Autónoma da Madeira, celebrado em 1 de Julho, desde 1980.