Pastoreio nas serras da Madeira

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Comentários da OrganicA – Associação de Promoção da Agricultura Biológica da Madeira À TOMADA DE POSIÇÃO da Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal (AAPEF) representada pelo Doutor Raimundo Quintal.

Intervenção florestal com mobilização de solo e evidentes sinais de erosão de solo – Maio 2018

Aproveitando que se comemora a semana do ambiente e ao mesmo tempo a época das tosquias, durante as quais se levantam vozes ameaçadoras e condenatórias da atividade, que atualmente é impraticável na Madeira, uma vez que nunca foi implementado ou adaptado à Região o regime de transumância ou utilização e movimentação sazonal de espécies de interesse zootécnico para pastagens de utilização comum;

“Porque o retorno das formações vegetais indígenas às terras altas da cordilheira central é crucial para o desenvolvimento sustentável da Madeira, entendemos ser oportuno demonstrar”, com o apoio de factos e argumentos científicos1,2,3,4,5,6,7,8 que é fundamental que seja equacionada uma forma de pastoreio que permita não só controlar os fogos florestais, reforçar a soberania alimentar, promover o desenvolvimento do mundo rural, mas também promover as condições para a regeneração dos ecossistemas de montanha, para que venham a ser efetuadas reflorestações com garantida de sucesso, sem o dispêndio desnecessário de recursos assumidos por todos nós;

Com o objetivo de evitar que o mito de que o pastoreio é o responsável por todos os males que atingem o povo madeirense, se torne uma verdade ao fim de tantas vezes repetida a mentira, a Direção da OrganicA, com base em dados históricos, argumentos científicos,1,2,3,4,5,6,7,8  e em consonância com um vasto trabalho desenvolvido em prol do desenvolvimento sustentável, proteção do ambiente e saúde dos madeirenses, facilmente comprovado no terreno e conhecido de muitos, assume publicamente a seguinte posição (https://www.facebook.com/organicamadeira/).

– Os incêndios mais temidos na Ilha da Madeira, com elevadas perdas humanas, e bens patrimoniais, ocorreram muito recentemente e já depois da retirada do gado das serras da Madeira. Arderam nos últimos anos:

·         2010 – 13 e 14 de agosto – 8 mil e 632 hectares
·         2012 – 17 de julho – 6 mil e 966 hectares
·         2013 – 15 e 16 de agosto – 1 283 hectares
·         2016 – 8 a 12 de agosto – 6 mil 266 hectares

Planalto Paul da Serra – Incêndios de agosto 2016

– Constatando-se que aumentou consideravelmente a frequência dos fogos e que, em apenas 1 ou 2 dias, o lume percorreu a Madeira de lés a lés, com uma velocidade de propagação nunca antes registada e com mais meios de combate, ao contrário do incêndio de 1919 que levou cerca de 15 dias a percorrer o território. As múltiplas notícias publicadas nos jornais permitem ter consciência da dimensão da catástrofe e do temor da população perante a impotência das entidades responsáveis pela segurança e ordenamento do território.

– Mesmo durante a época em que as serras da Madeira estavam povoadas de animais de várias espécies, para matar a fome à população em crescimento e fazer face a necessidades básicas da altura, quando não existiam outras formas de o fazer, registaram-se vários incêndios de grande dimensão, não por culpa dos criadores, mas pela clara falta de ordenamento da atividade pelas entidades responsáveis.

– O ordenamento do território (com a inclusão do pastoreio) é fundamental não só para a prevenção dos incêndios como também para a redução do risco de aluviões 3,4,5,6 através do enriquecimento do solo com matéria orgânica, que permite o aumento da retenção de água e a fixação dos agregados que evitam a erosão. Registe-se que em 2010 aconteceu a aluvião de 20 de fevereiro que levou a vida de 43 pessoas (+ 6 desaparecidos) e desalojou outras 1200 com prejuízos na ordem do 1080 milhões de euros (dados oficiais inscritos POSEUR).

– Desde a retirada total do gado, que ocorreu em 2003, já foram efetuadas inúmeras intervenções de reflorestação, sendo que na última década, o Governo Regional da Madeira já investiu ou gastou, de acordo com dados tornados públicos, 28 milhões de euros embora até à data nenhuma ação possa ser considerada um sucesso. Só os prejuízos causados pelos incêndios de agosto de 2016 ascenderam a 150 milhões de euros.

Serras de Santo António em visível estado de erosão – 2010

– Após 15 anos, desde a retirada do gado do Parque Ecológico do Funchal (PEF), a área sofreu uma considerável degradação, e desde 2003 já ardeu 3 vezes. Em 2010 o lume consumiu 90% da área do PEF e em 2016 ardeu 60%.

– Reconhece-se que a pressão do pastoreio livre conduziu à destruição de importantes biótopos, nomeadamente nos ecossistemas de montanha. Contudo, em nosso entender,  os principais motivos que levaram à intensificação da atividade, com o agravamento dos impactos no ambiente, foram impostos pela adoção de medidas legais, técnicas e políticas, nomeadamente a aposta na produção animal intensiva e no apoio à importação de carne barata, que retirou aos criadores qualquer possibilidade de competirem e sobreviverem num mercado global, obrigando-os a aumentarem os encabeçamentos, a apostarem em raças mais produtivas e também mais exigentes, a gastarem menos energia nas deslocações, a suplementarem com rações, a preocuparem-se menos com os recursos naturais e finalmente a tornarem o seu produto igual a todos os outros. Devido a estas opções políticas, a atividade do pastoreio na Madeira perdeu valor e rentabilidade e culminou no abandono dos animais na serra. A este nível, e a título de mero exemplo de como esta atividade poderia ser rentabilizada do ponto de vista económico, veja-se alguns casos de sucesso como os que têm vindo a vingar nos Açores, de produtos de grande qualidade com preço premium, produzidos artesanalmente e já com projeção nacional e internacional, como é o caso da Manteiga Rainha do Pico https://merceariadosacores.pt/loja/manteiga-rainha-do-pico/, entre outros;

Serras de Santo António – 2017

– “Em 1995 foram retiradas 1300 ovelhas e cabras e em 1996 teve início o programa de reflorestação, com os objetivos de recuperar as formações vegetais primitivas; minimizar as condições de propagação de fogos; reduzir a erosão e diminuir os efeitos catastróficos das cheias; aumentar a infiltração das águas e reforçar as nascentes”, objetivos esses que nunca, até agora, foram alcançados;

– O processo de retirada do gado das serras altas de Santo António, São Roque e Areeiro terminou em julho de 2003. Estas serras estão agora infestadas de espécies exóticas que as entidades oficiais tentaram, em vão, controlar com medidas ainda mais poluentes e destrutivas, nomeadamente com a aplicação de herbicidas de largo espetro que matam toda a vida do solo e contaminam as águas subterrâneas, com mobilizações de solo que têm provocado a erosão e perda de solo, assim como a disseminação de sementes de invasoras, num trabalho que se mostra visivelmente inviável e esbanjador de dinheiros públicos;

– “A Secretaria Regional dos Recursos Naturais acordou com três cooperativas de criadores que no perímetro florestal do Poiso poderiam apascentar 600 cabeças de gado ovino, com apoio nos ovis do Chão das Feiteiras, do Chão das Aboboreiras e da Ribeira dos Boieiros. Quem diariamente acompanha os animais não são os donos, mas trabalhadores da Direção Regional de Florestas (agora Instituto das Florestas e Conservação da Natureza)”. Cada criador paga no entanto, um valor por cada animal que detém. Com o dinheiro recentemente oferecido pelo Governo Regional, sugeríamos que as cooperativas comprassem novos rebanhos e perguntassem ao Instituto das Florestas e Conservação da Natureza o que fazer com eles, uma vez que não existe atualmente uma política oficial integrada para o setor pecuário, transversal a todos os serviços com competência na matéria. Na verdade, o que se nota é uma total disfunção entre quem decide as estratégias globais e os apoios financeiros, a Secretaria Regional de Agricultura que deveria adaptar e tutelar a transumância e movimentação de animais entre explorações e a Secretaria Regional do Ambiente e dos Recursos Naturais, que tem nas suas competências o pastoreio em áreas florestais e protegidas e inclusivamente, a Secretaria Regional da Economia, Turismo e Cultura que poderia tirar partido da dinamização desta atividade não só em termos comerciais como turísticos e culturais.

Vaca morta nos incêndios de agosto de 2016. Encontrava-se em terreno vedado, sem possibilidade de fugir e a velocidade dos fogos não permitiu que os donos a soltassem.

– Porque não existe uma estratégia global integrada para o pastoreio na Madeira, com definição das regras por pessoas competentes que percebam efetivamente de pastoreio e de comportamento animal, com o apoio de conhecedores de outras áreas científicas, não existe atualmente pastoreio controlado na Madeira. É nossa convicção, contudo, que com uma definição clara das áreas, dos percursos, do sistema de pastoreio e espécies a introduzir consoante os objetivos de longo prazo a alcançar, não só em termos agrícolas como ambientais e económicos, seria possível desenvolver o pastoreio e a silvo pastorícia e usá-lo como uma ferramenta de ordenamento do território, acautelando a segurança de pessoas e bens para além da atividade económica que geraria.

– Continuamos à espera de argumentos científicos que responsabilizem diretamente os animais e não o Homem, pela degradação do ambiente. Enquanto isso, multiplicam-se e estão disponíveis para consulta 2,10,11,12 e visita, casos de sucesso, em todo o mundo, que utilizam sabiamente os animais na recuperação de áreas degradadas e com impactos positivos nos ecossistemas, tenham eles originalmente evoluído com ou sem a presença de animais herbívoros;

– Há no entanto aqui e em suma, exemplos de rebanhos mal vigiados, que tanto as entidades competentes, assim como os opositores de qualquer forma de pastoreio, usam como pretexto ou para dizer que a atividade é permitida ou para dizer que a atividade é destrutiva, conforme dá mais jeito ou melhor serve os propósitos de cada um.

Paul da Serra, pastagens de altitude em solos pobres maio 2018.

A OrganicA é frontalmente a favor da manutenção de manadas e rebanhos no Parque Ecológico do Funchal, considerando esta uma das soluções sustentáveis de regeneração desta área, fundamental para a segurança das populações a jusante e da passagem de animais de várias espécies, consoante o objetivo a alcançar, devidamente acompanhados, nas terras altas do Maciço Montanhoso Central e no Paul da Serra / Fanal, de forma a promover a ativação da vida do solo e das condições necessárias para a recuperação dos ecossistemas de montanha e da vegetação natural, numa fase posterior.

A OrganicA defende, desde sempre, diversas formas de pastoreio, que deverão adequar-se na forma, na espécie e sob a vigilância de diferentes intervenientes consoante o objetivo e as zonas onde é desenvolvida, não sendo necessário a intervenção ou autorização do IFCN em áreas fora do perímetro florestal e cabendo aos proprietários e detentores dos animais, cumprir com as normas que venham a ser definidas e apoiadas como uma atividade que mais do que um setor produtivo seja encarada como uma estratégia de ordenamento e sustentabilidade do território.

A OrganicA entende que a redução do risco de incêndio (número de focos e área ardida) só acontecerá quando todos os intervenientes e primeiros beneficiários compreenderem que deve haver uma estratégia integrada de prevenção e que os proprietários dos terrenos só vão tomar a iniciativa de limpar e manter os seus terrenos livres de materiais combustíveis e outros riscos associados, se sentirem que daí poderão tirar proveito próprio, para além da salvaguarda do bem comum.  A manutenção de prados ou pastagens de altitude, sejam eles semeados ou espontâneos implicam necessariamente a introdução de animais que ao consumirem parcialmente a vegetação existente e provocando o tombamento do restante para o solo, promovem uma barreira à incidência direta da luz do sol sobre o mesmo, permitindo o contacto da parte aérea da planta com a humidade existente no solo, assim como uma elevada inoculação microbiológica provocada pelo depósito de urinas e fezes dos animais, em trânsito2. Assim, regista-se uma decomposição da matéria orgânica com benefício para o solo, desprende-se o dióxido de carbono gasoso que ao combinar-se com a água, forma o ácido carbónico, um excelente solubilizador natural dos minerais necessários à nutrição das plantas. Esta mistura de humidade com carbono e a elevada carga biológica é por assim dizer a combinação ideal para o arranque do sistema e para a recuperação rápida das funções do solo e desenvolvimento e sucessão vegetal. O controlo de espécies espontâneas, tornadas invasoras por incúria do homem, em grandes extensões não pode, de forma alguma ser feita sistematicamente com recurso a máquinas, combustíveis fosseis e esbanjamento de dinheiros públicos.

A OrganicA é uma Organização Não Governamental sem fins lucrativos com 5 anos de trabalho voluntário e reconhecido, na área da defesa do ambiente e da saúde pública assumindo desde sempre uma linha de ação consentânea com os seus objetivos pelo que todas as suas intervenções, atuações e tomadas de posição têm um denominador comum. Ao mesmo tempo que defendemos uma alimentação livre de químicos de síntese, um modo de produção agrícola saudável e sustentável, a adoção de comportamentos conscientes e responsáveis em defesa do ambiente, defendemos também o pastoreio e a silvopastoricia como uma ferramenta de ordenamento e recuperação do território. Não entendemos que pessoas ou entidades que se dizem ambientalistas e que com esse argumento reprovam a atividade pecuária extensiva, defendam ou legitimem a utilização de herbicidas em espaços públicos e desvalorizem a agricultura biológica.

Assumimos publicamente esta posição a favor da legalização e regulação do pastoreio em nome da Direção da OrganicA, mas não representamos a opinião de todos os nossos associados que têm obviamente a liberdade de pensar diferente. Assim, estamos disponíveis para apoiar os criadores e entidades oficiais que queiram efetivamente dinamizar e reativar o pastoreio, e nessa perspetiva estaremos na primeira linha para ajudar a definir as linhas de estratégia para o setor, se assim o entenderem.

A água, o solo e a biodiversidade são recursos vitais, que não podem ser delapidados nem usados em troca de protagonismos.

Funchal, 07.06.2018

A Direção da OrganicA

 

1 CONSERVATION GRAZING An Opportunity for Land Trusts and Conservation Organizations – Pepper, Justin National Audubon Society

2 https://www.ted.com/talks/allan_savory_how_to_green_the_world_s_deserts_and_reverse_climate_change/transcript  fevereiro 2014

3 https://www.youtube.com/watch?v=nvAoZ14cP7Q – agosto 2015

4 http://e360.yale.edu/feature/soil_as_carbon_storehouse_new_weapon_in_climate_fight/2744/OECD/FAO (2012), OECD-FAO Agricultural Outlook 2012-2021, OECD Publishing and FAO. http://dx.doi.org/10.1787/agr_outlook-2012-en

5 http://www.amazingcarbon.com/PDF/JONESOurSoilsOurFuture(8July08).pdf%20Epopeia%20Rural%20-%20Prof.%20Vieira%20Natividade.pdf

6 http://darwin-online.org.uk/converted/pdf/1881_Worms_F1357.pdf

7 http://souciant.com/2012/02/reversing-africas-decline/

8 http://www.theland.com.au/news/agriculture/cattle/general-news/more-livestock-is-climate-change-key/2218226.aspx?storypage=0

9 ‘Efectos del abandono de la ganadería extensiva en la estructura espacial y temporal de ecosistema tradicionalmente gestionados’ – Lugo, Silvia Fernández 2014

10 Associação Transumância e Natureza – https://www.atnatureza.org/