O Cerro  dos  Moinhos  Juntos

 

Não.  Não  é  o  título duma novela  fantástica, mas  poderia  ser. O  Moinho é um  enorme  pássaro. E  voa.  E canta.  O voo  do  Moinho  é  um  anseio  a  pairar  no  cimo  dum  cerro  sobranceiro  a  Odemira. O  seu  canto  é  um  delírio  de  vozes  longínquas  emergindo  de  um  lugar  sem  tópico  e  sem  tempo. Vozes  que vêm  do  fim  do  vento  e  com  ele  chegam  e  invadem  os  «búzios»,  e  nós, de  atónitos,  calamos  a  expressão  do  espanto  para  que  o  silêncio  seja  apenas  o  da  nossa  emoção.

No  alto  do  Cerro  dos  Moinhos  Juntos  há  um deles  pronto  para  o  sacrifício  que  há-de  submeter  os  grãos à  tortura  da  pedra,  um  moinho-altar,  onde  o  grão  será  imolado  para  que  se  faça  o  pão  da  nossa  sobrevivência,  a  ração  de  cada  dia,  nascida  da  mística  rotina  das  mãos  sobre  a  farinha  e  a  água.  A  farinha  e  a  água  são  elementos  sagrados,  conjugados  com  o  fogo,  nessa  química  perfeita  que  os  transforma  em  alimento. E  o  Moinho  espera, paciente, que  a energia  das marés,  nascida  do  movimento  das águas  entre  a preia-mar  e  a  baixa-mar,  levantem  o  vento, a  força  mágica  que  lhe  desprenderá  as  asas  para  o amplo voo da sua  perfeita  ascese.

Ao lado deste, jaz um tronco  de pedra, despido  de argamassa, de cor ferrosa, tom  de ouro velho, ruína doutro moinho que em  tempo remoto foi  profícua  moedora, igualmente  pássaro  de alvas  asas, ali, ao lado do primeiro, companheiros de  missão, juntos na vida e, possivelmente, na  morte. Os  dois, juntos, dão o nome  ao  Cerro.

Enquanto os humanos  fizerem  pacto  de  compromisso  com  a  terra, o moinho recuperado  continuará  fiel  ao  seu  labor, silhueta mansa, haurindo  o espaço, desafiando  a  altura, voltado  ao  Mira e ao  Atlântico.

Moinhos  são personagens  de estranhas  ficções que a imaginação dos  criativos  transporta até aos romances e  narrativas  fabulosas, tornadas  fantasmas  ou  gigantes, habitat  de  feiticeiros, ou  sábios, corujas  agoirentas,  ou poetas solitários. São  lugares mágicos,  contentores  de mensagens  secretas, inspiradores de material  literário, como a  cena  quixotesca  que levou o herói de Cervantes  a  enfrentá-los e a travar  com  eles   uma  batalha  patética, à  falta de reais inimigos  que satisfizessem  o seu  apelo bélico e  o seu ímpeto    aventureiro.  Alphonse Daudet  escolheu  um moinho  para  cenário das  suas  «cartas»,  memórias duma Provença rural e pitoresca, que em tempos  foram estímulo  à fantasia  dos adolescentes sedentos de viagens. « Alphonse, Alpfonse, moleiro  de  palavras  e  estrelas».

As moleiras  eram moças inspiradoras de cantigas e lances amorosos, citadas  nos  cancioneiros  populares. Entre  estas  evocações  é  de boa  memória  o longo poema de Guerra Junqueiro  «A Moleirinha,» um quadro  bucólico, de  grande ternura, desaparecido  com  a  morte  dos  moinhos,  completamente esquecido  no fundo dos  velhos  livros  escolares.

Moinhos  são  também  os dias da vida, moendas  nossas, sujeitas  aos  ventos  da  sorte e de  marés insuspeitas que se deslocam ao  nosso  encontro. Fernando Pessoa tinha os seus moinhos pessoais e servia-se deles para  os arroubos poéticos a exemplo desta quadra melancólica:

O moinho  que  mói  trigo

mexe-o  o  vento  ou  a  água.

Mas  o  que  tenho  comigo

mexe-o  apenas  a  mágoa.

Ou ainda esta de autor desconhecido:

Meu  coração  sem  carinho

de  teu  amor,  que  tormento!

É  qual  se  fosse  um  moinho

parando  à  falta  de  vento.

O  objectivo destas  divagações  líricas  é  introduzir  aqui  uma referência à  Molinologia,  que  apela  as  sociedades  à  valorização  dessas  simpáticas  máquinas  de  vento e  consagra o  dia 17  de  Abril à sua  evocação.  Vários  congressos  têm  sido  realizados  através  da  «Associação  Internacional  para  a  Conservação  e  Estudo  dos  Moinhos». Em 2016  reuniu-se  em  Segóvia o  X Congresso   sobre  este  património.   Existe também   uma  Rede  Portuguesa  de Moinhos.  e  alguns  deles  estão  já  recuperados  operando  regularmente: O de  Odemira,  o  de  Aboim  e  o  de  Sobral  de  Monte  Agraço,  entre  outros  em  todo  o  país.  Esta  área  de  estudo  tem por  fim,  além  da  requalificação  da  paisagem, a  defesa  do  ambiente,  com  o  aproveitamento  das  energias  alternativas,  a  eólica  e  a  hidráulica  e  o  incentivo  à  agricultura, neste  contexto, a  agricultura  cerealífera.

Além  de  evidente, penso  que  é  profícua  a  osmose  entre  literatura  e  ciência,  por  estimular  a  sensibilidade  dos  que  alinham  nestas  duas  áreas  do  conhecimento.  Não  há  farinha  sem  moinho,  não  há  pão  sem  água, não  há  poesia  sem  Natureza.

Poesia. pão, água,  vento, e sobrevivência, são  palavras  dum  glossário  comum  a  que  não  somos  indiferentes.