Sobre o olhar do “outro”, num dia muito frio de fevereiro


Entre as caixas que se vão abrindo, muito lentamente, e sobretudo nos dias de chuva, encontrei, já num tom vermelho amarelado, a tradução do Discours de la Méthode, de Descartes. Comecei a folheá-lo, de novo, de trás para a frente. Fico sempre agarrada às suas palavras, sob a forma declarada de uma nova cosmovisão ou mundividência de um espírito crítico de finais do século XVI, inícios do século XVII. Descartes morreu a 11. Num dia muito frio de fevereiro. Entretanto, passaram 367 anos.
Hoje, raramente encontramos pessoas nas quais habita uma verdadeira liberdade interior. Para o humanista, «não basta ter o espírito bom, pois que o principal é aplica-lo bem. As almas, por maiores que sejam, são capazes dos maiores vícios, assim como das virtudes, e aqueles que caminham muito lentamente podem ir mais longe, se seguirem sempre o caminho direito, do que aqueles que correm e dele se desviam», esclarece. E, aqui, não podia estar mais de acordo. E, em desacordo, também.
A consciência de que muito do que partilhamos, física e verbalmente, está invariavelmente condicionada pelo olhar do “outro”, pode funcionar como um verdadeiro impulso para seguirmos pelo caminho que alguém escolheu por nós. Sob a luz do dia, às cegas. Tropeçamos. E, no fundo, por defesa ou por ingenuidade, quantos de nós já não sentimos o peso da avaliação dos outros? De uns e de outros. Dos cépticos, que duvidam apenas por duvidar.
Descartes, no seu Discurso de Método (1637), afirma que «(…)pelo que me diz respeito, jamais tive a presunção de que o meu espírito fosse, em alguma coisa, mais perfeito do que os espíritos da gente comum; desejei, até, muitas vezes, ter o pensamento tão pronto, a imaginação tão clara e distinta, ou a memória tão ampla e rápida, como têm algumas pessoas». O importante não é ter o espírito mais perfeito.
O bom senso ou a razão, dirá que será antes, sentir uma liberdade interior que nos leve longe, sem pressa, no nosso próprio caminho, sem pensar no olhar do “outro”. Um “outro” preso a códigos sociais restritos, à procura de um qualquer estatuto que lhe traga para junto daqueles que, como eu, como tu, e tantos outros, permaneçam empenhados em seguir o percurso que delinearam para si próprios, sem regras geométricas, sem plano arquitetónicos, mas profundamente alinhado com a nossa verdadeira natureza. Com consciência.
É sempre bom voltar a Descartes.