Se uma galinha falasse…

O que se passa com a nossa faculdade de pensar remete-me para o domínio que agora se alastra pelo mundo, à volta do qual tanta controvérsia se gera: O domínio das tão vulgarizadas redes sociais. benéficas ou prejudiciais, importantes ou irrelevantes, necessárias ou dispensáveis, a discussão cria o momento, o momento leva à acção, a acção reverte-se no pensamento.
Neste momento, sem que nenhuma destas condições se afirme primordialmente, o que é certo é que houve uma circunstância veiculada pelo facebook responsável por esta pequena crónica. Um vídeo que me activou a lembrança, fez -me recuar no tempo e aproximou-me duma circunstância estranha, que já tornei pública em escritos de há uns anos. Preciso de recuperar agora, através duma pequena sinopse, o que de facto aconteceu: Houve, há muito tempo, no meu antigo galinheiro, uma galinha vermelha, a cor característica da raça Rhode Island, que protagonizou uma inusitada história. Dei-lhe o nome de Cora em tributo a uma amiga que ma ofereceu e se chamava assim. Mais tarde, num dia triste, a minha amiga deixou o mundo, mas a sua memória estava ali, resguardada, naquele pequeno corpo de penas que alegrava o meu galinheiro. A galinha Cora envelheceu, chegou para ela o tempo de partir também, não sei para onde, mas decerto à sua espera existiria um lugar perto da eternidade, uma vez que levaria consigo um recado de saudade para entregar àquela de quem herdara o nome. Aninhada num canto do galinheiro, inerte, acusando uma impressionante rigidez, Cora jazia penosamente, com o corpo ferido , deformado por um mal que em poucas semanas se agravou. Acompanhei-a de perto nesses últimos momentos. Chamei-a várias vezes pelo nome. Cora não reagia.
Tinha a cabeça virada para a parede traseira do galinheiro e eu insistia em que a voltasse para o meu lado. Demorei-me ali algum tempo. Havia uma inexplicável vibração que o meu pensamento libertava e me avisava de que Cora comportava em si um fluido humano e que seria possível um diálogo entre nós. Senão um diálogo, pelo menos que o bicho pudesse escutar a minha voz e dar-me um sinal de que me compreendia. Chamei-a continuamente, ordenando, num imperativo carinhoso: «Cora, Cora, olha para mim». Várias vezes, teimosa e insistentemente : «Volta-te, olha para mim». Até que, num impulso espantoso, numa torção repentina, um movimento inverosímil, Cora voltou subitamente a cabeça. Cora quis ver-me uma última vez. Estendeu uma pata numa violenta distensão muscular e morreu. Morreu a fitar-me, de os olhos esbugalhados, como se tivesse entendido o significado da frase que lhe dirigi. E decerto entendeu. Este é um episódio real que preservo nas memórias da minha vida.
A relação desta evocação com o primeiro parágrafo desta crónica é o facto de ela ter sido possível porque alguém me enviou, através duma rede informática, um pequeno vídeo em que uma criança afaga entre os braços uma galinha. Precisamente uma Rhode Island. Amorosamente, encosta a cabeça loura ao bico do galináceo e o bicho mantém-se sossegado, completamente rendido a este afecto singular. De estranhar numa galinha, normalmente nervosa e arisca, a pacífica estase que a mantém no aconchego deste abraço.
Uma outra inesperada projecção arrastou-me o pensamento para toda a azáfama que agita estes dias. As lojas feéricas, as montras recheadas, o povo apressado na preparação cada vez mais antecipada da época que se aproxima. E assoma inevitavelmente à minha lembrança, a determinação cultural que nos arreiga aos hábitos avoengos, a fidelidade à tradição, a evocação dos ausentes, o calor das consoadas e das mesas abundantes. E, no centro de todas as memórias, a abalar a lógica da nossa vida regrada, avulta a das galinhas gordas que, na minha infância, se preparavam festivamente para as canjas do Natal.
Mundo contraditório e absurdo este, em que a morte se confunde com a vida no mesmo patamar de tolerância e indiferença. Se uma galinha falasse, saberíamos que também talvez sentisse…e, possivelmente, também sofresse.
A história de Cora, esse insólito comportamento nos seus últimos momentos, foi uma rara experiência sobre os silêncios inexplorados que enunciam um Universo desconhecido.