Resgatar a poesia numa sociedade sem afetos. É urgente “encher corações”, defende escritora Olinda Beja

Olinda Beja está na Madeira para apresentar um novo livro, “O Chá do Príncipe”. O lançamento será a 19 de outubro, no Funchal, mas entretanto a escritora e poetisa são-tomense tem andado pelas escolas a contar as suas histórias. Quer contribuir para melhorar uma sociedade em crise. Através da poesia.

A escritora esteve esta terça-feira na Escola Básica dos 2º e 3º Ciclos dos Louros, uma das 22 que irá visitar até 26 de outubro, para transmitir aos mais novos a linguagem feita de cheiros, sons e música do seu país. Falou das riquezas de um arquipélago que vão para além das exportações de cacau e café. Mostrou como a sua poesia é herdeira de uma tradição oral que atravessa gerações, numa homenagem à cultura são-tomense e à lusofonia.

Não é à toa que São Tomé e Príncipe é considerado o país onde há mais sorrisos nas crianças e que as ligações intergeracionais são fortemente matriarcais. São as mães e as avós as guardiãs da memória que persiste através da oralidade, uma dimensão que Olinda Beja tem vindo a dinamizar a par da sua atividade editorial.

Está novamente na Madeira. Já perdeu a conta às vezes que visita a ilha. A primeira foi há 49 anos na sua lua-de-mel. Enamoramento de uma vida, confessa a escritora e poetisa, que encontra na Região o lar insular e marinheiro da sua terra. Desta vez, o motivo é especial. “Adoro a Madeira, uma terra com laços afetivos e culturais muito fortes a São Tomé. Por isso, não podia deixar de prestar esta homenagem”.

Refere-se ao seu novo trabalho, “O Chá do Príncipe”, que será lançado na próxima semana, no Centro de Estudos de História do Atlântico, Funchal. Trata-se do seu mais recente livro de contos, que demorou “cinco anos a escrever”. Uma iniciativa que se realiza pelas mãos da Rosa Porcelana Editora, em parceria com a Associação Companhia Contigo Teatro, e que conta com o apoio da Secretaria de Educação e da Direção Regional da Cultura.

Não desistir da poesia nas escolas

Entretanto, percorre as escolas. Com os mais jovens prefere a interação, o contacto pessoal. Dos seus tempos de professora ficou o gosto por narrar histórias. E as suas começam logo pelo local onde nasceu há 71 anos: São Tomé e Príncipe, palco e ator principal das suas aventuras fantasiosas e poéticas.

Olinda Beja vem de um país que não entra na lista dos mais poderosos. Arquipélago ao largo da costa africana, São Tomé e Príncipe atravessa grandes desafios na saúde e educação, e ainda hoje tem nas viaturas todo o terreno a melhor forma de percorrer o magnífico território marcado pelas densas florestas e campos agrícolas. Engloba duas ilhas que ultimamente têm estado no topo dos roteiros turísticos dos europeus. Uma delas, a do Príncipe e em estado quase natural, é reserva da biosfera reconhecida pela UNESCO.

Para além da natureza, tem o povo afável e tão misterioso quanto as setes ondas da praia ou a cobra preta do cafezal. Deste imaginário, ressalta nas suas gentes o gosto pelas lendas antigas, pela história contada, dos tempos dos primeiros navegadores portugueses que por lá deixaram filhos e as raízes de uma lusofonia multicultural.

É por isso que São Tomé e Príncipe é muito rico, garante Olinda Beja, perante a plateia de alunos da Escola Básica dos 2º e 3º Ciclos dos Louros, esta terça-feira, no âmbito do projeto regional “Ler com Amor”, dinamizado pelo grupo “Contigo Teatro” em colaboração com os docentes de Português.

Sim, muito rico, insiste. Em sorrisos, em belezas naturais e em cultura. Para uma poetisa, explica, a riqueza vem da alma, dos valores e dos afetos. E a poesia, tecida em língua portuguesa matizada pelas tonalidades do cacau e os aromas do café, é a herança que Olinda Beja quer deixar aos outros, principalmente às crianças e jovens.

“Pena é que a poesia seja muitas vezes desvalorizada nas salas de aula, em detrimento do conto e do romance”, lamenta. Reconhece porém que não é fácil aos professores trabalhar com os mais novos a dimensão subjetiva. “ O segredo está nos afetos. Há que persistir na difusão na poesia”.

“Encher corações” é urgente

Tem sido esta, aliás, a sua preocupação nos últimos anos, sobretudo depois de se ter aposentado do ensino. Aos 71 anos, continua a viajar e a embrenhar-se na floresta para conhecer memórias. Escuta e escreve. Escreve devagar ao ritmo dos enredos que vai ouvindo. Precisa de sentir-lhes o pulso.

“Não é um processo fácil. É demorado e envolve muito trabalho de campo”, admite. No entanto, é compensador. “Nestas experiências encontro o material para os meus livros e para as histórias que partilho com os mais jovens”.

Tem já 17 livros publicados em várias línguas, a que se junta agora “O Chá do Príncipe”. Na forja, um outro romance e livro de poesia.

Porquê então preferência pela oralidade? Olinda Beja toca o batuque, ensaia com os alunos o refrão que acompanha a história. Arranca sorrisos e palmas. Afinal, ser contadora de histórias é como embalar filhos no regaço. Tal como as mães, os contadores envolvem as narrativas em emoções e, assim, elas tocam intensamente o coração. “Quando se conta uma história, há um grande envolvimento emocional e físico, através da modulação da voz, das expressões e da performance corporal. É um processo que integra também quem ouve, sendo assim um poderoso meio de transmissão de informação, valores e sentimentos”.

A escritora não poupa nas palavras quando defende a literatura como uma forma de “encher corações”. O contributo das letras, faladas e escritas, na construção de um mundo melhor é cada vez mais urgente. “A sociedade está com problemas porque se encontra vazia de amor”.

A constatação é transversal. Chega aos programas de Português e às escolas. Os autores da lusofonia nem sempre são bem escutados nas salas de aula, sobretudo dos países africanos de língua e expressão portuguesas. Há muito trabalho a fazer, alerta a também dinamizadora cultural que defende mais projetos de cooperação, de forma a esbater distâncias para reforçar um património único. “É a língua portuguesa e a cultura que nos unem. Um povo sem cultura é um povo sem alma”.

Apontamentos Biobibliográficos:

Olinda Beja nasceu em S. Tomé e Príncipe, na cidade de Guadalupe. Veio para Portugal (Mangualde – Beira Alta) com quase 3 anos de idade, onde estudou e obteve o Diploma Superior dos Altos Estudos Franceses da Alliance Française e, mais tarde, a Licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas (Português/Francês), pela Universidade do Porto. Fez ainda o Curso de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (LALP) pela Universidade Aberta, tendo concluído, na Suíça, vários outros cursos inerentes à sua atividade profissional e literária.

Foi professora do Ensino secundário desde 1976. A partir de 2005 e até 2014 lecionou Língua e Cultura Portuguesas na Suíça. É ainda leitora de poemas (vários recitais de poesia em Portugal e em vários pontos do mundo, desde Brasil, Suíça, Alemanha – convidada especial para representar S. Tomé e Príncipe no Festival Internacional de Poesia de Berlim – 2008; França, Austrália e Timor).

Como contadora de histórias e dinamizadora cultural, tem desenvolvido o projeto pedagógico-cultural “A Arte do Dizer e do Contar” em Cabo Verde, Brasil e outros países da Lusofonia.

Apresenta frequentemente as suas obras em estabelecimentos de ensino em Portugal e no estrangeiro, sobretudo no Brasil, incentivando quem a escuta a descobrir não só a Literatura e a Cultura de um país lusófono, mas também as lendas e as histórias da Beira Alta como acontece com o  livro A Casa do Pastor (traduzido para inglês por Ann Morgan e já à venda nos Estados Unidos).

Recentemente recebeu o galardão “Prémio Literário Francisco José Tenreiro” pela sua obra poética À Sombra do Ôká que também já entrou para o Plano Nacional de Leitura-Ler+.

O seu livro “Um grão de Café” é a primeira obra dedicada às crianças de S. Tomé e Príncipe. Entrou para o Plano Nacional de Leitura.