“Fábula de amor e mar” de Fernando Letra ganha prémio literário António Feliciano Castilho

O conto de seis páginas “Fábula de amor e mar” ganhou a XV edição do concurso literário promovido pela Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, “António Feliciano Castilho”.
O conta é da autoria de Fernando Letra.
Leia-o na íntegra:
“Olhando de passagem, parecia apenas mais um barquito de nada, varado no calhau preguiçoso sobranceiro ao forte de S. Tiago. Assim, à primeira vista, ninguém lhe dava grande importância, parecendo igual a tantos outros que também por ali ficavam flutuando durante dias, semanas até, como que a marcar posição – amanhã é que vai ser! – mas sempre sem grandes feitos para narrar. Puro engano; o ‘Regresso a casa’ – assim o tinham baptizado, segundo diziam, para que o mar o mandasse sempre de volta – transportava muitas histórias nas suas tábuas azuis e verdes que se confundiam com o mar ao entardecer, quando o sol tornava ofuscante a cintilante ondulação que lambia os seixos da margem desde tempos imemoriais, mesmo antes de haver barcos. E quantas vivências tinha ele para contar quando voltava ao calhau…, mas isso é também outro conto, que havendo razão conto mais tarde… E não julguem que os segredos escondidos nas calafetagens artesanais eram apenas episódios de aventuras amorosas – nem todas bem sucedidas – que cada ano trazia e levava mais depressa que as marés.
Dessas memórias, Tolstoi faria uma enciclopédia, provavelmente sem fim, como frequentemente terminavam algumas das saídas arrojadas daquele rapaz da rua de Santa Maria, que lá hipnotizava as estrangeiras que se impressionavam com o seu tom acobreado de ‘homem do mar’ e acabavam irremediavelmente rendidas aos moldados músculos dos braços que anos a fio controlavam aqueles remos que raramente apontavam a terra, ao contrário dos desejos expressos e expressivos no nome do batel que o completava. C
onta uma história de algum recanto perdido da imaginação que, numa noite de Julho, quando a lua cheia prateava o mar, o pequeno barquito se fez ao largo com o seu navegador – ou vice-versa, que por vezes não se tem bem a certeza de quem conduz quem, e esta era uma delas – mais para esquecer um desamor de verão, para trás deixado entre ponchas e amendoins, que por vontade de navegar –, embora todos saibamos que na vida não fazemos outra coisa, mesmo contra nossa vontade são as marés que nos levam e essas, como toda a gente sabe, são mais do que os marinheiros. Ao largo, mas não muito, afadigavam-se os pescadores da faina do atum. A ruama da tarde recente tinha sido premonitória e um grande cardume de rabilho cruzava as águas perto da costa, em revoluteios estonteantes de azáfama alimentar que terminavam amiúde na ponta de um anzol e no gancho que o condenava, deixando o animal sem fôlego quando o puxavam pela amurada – coisa estranha para nós, que fazemos do ar o maior sustento, mas que mata os peixes, mesmo os voadores…
Para os experimentados pescadores era como se tivessem ao alcance a sorte grande; o ‘rei de todos os peixes’, o Thunnus thynnus, já glorificado por melhores narradores que este, e que raramente passava nesta zona ali estava em grande número. Uma noite, apenas uma noite de pesca, poderia representar um ano inteiro de ganhos e eles não iam perder a sua oportunidade.
O rapaz do barquito a remos estava longe de querer entrar nesta contenda, ensimesmado pela desabitual desventura nocturna, revendo um a um os passos do enamoramento incompleto, para tentar descobrir onde tinha falhado. Soubesse ele uma ínfima parte dos segredos do universo e ignoraria a desfeita, como a considerava, mas assim são os homens, arrogam-se em descobrirem a partícula de deus e esquecem-se muitas vezes que os trinta dias de um mês nunca se cumprem em completo entendimento no ventre do sexo oposto. ‘Regresso a casa’ navegava já quase por si próprio, pois o pensamento liberta-se de amarras físicas e deixa barcos à deriva, dentro e fora de água, este, felizmente, não tem escolhos pela frente. Ou não seria de prever que os tivesse porque, repentinamente, um estrondo trouxe de volta o espírito do rapaz, cuja mente já navegava apenas por si própria, estremunhado de escuridão e mar, interrogando-se repentinamente, envolto em visões de naufrágios e sereias.
Mas não, era apenas um atum que na sua perseguição ou fuga – vá-se lá perguntar ao animal – tinha embatido na quilha do barquito, mais rija do que aquilo que parecia, ficando aparentemente inanimado ao lado de um dos remos que serenamente parecia dormitar também sobre as águas. O sobressalto extemporâneo devolveu a rapaz de Santa Maria à água salgada que o rodeava, e aos chapinhados sons que a noite sempre amplia. Debruçado do barco sobre o mar, olhou a involuntária presa, de uma involuntária pesca – poder-se-lhe-ia chamar assim? – de uma ainda mais involuntária aventura nocturna; há dias que têm dias dentro de dias, sem parar, é só pensarmos um pouco…
Nunca ele tinha observado um atum rabilho no seu meio natural; as idas ao mercado onde se esquartejam peças para vender ao quilo não contam, de natural já pouco lhes sobra, e que rico atum aquele era, num reluzente azul acinzentado, que se tornava ainda mais vívido sob a luz da lua cheia… alcançando quase o comprimento do barco, com o respectivo respeito de peso… ou seria peso de respeito; mais de dois metros, talvez 200 quilos, cálculo rápido e empírico de contas de bancada de supermercados e peixarias… E, de súbito, ficou sem saber o que fazer. Peixe afoga-se se estiver inanimado dentro de água? Talvez, se ficar com as guelras de fora… Ou poderá morrer se for ao fundo sem acordar? E uma estranha angústia invadiu-o, o que mais ainda o incomodou por se tratar apenas e exactamente de um peixe…
Por baixo do oleado na ré, um volume chamou-lhe a atenção e lembrou-se da velhinha rede de descanso, ou de balanço, que tantas vezes utilizava para prolongar tardes ou antecipar noites prazerosas. Iria ter de servir para outros fins, pensou. Uma ponta presa no tolete do lado direito, um mergulho rápido sob o barco, nova prisão no tolete esquerdo e eis um atum rabilho a salvo – esperava ele – … numa rede… de lazer; situação deveras estranha e quase semanticamente contraditória, mesmo para o rapaz de Santa Maria, que já tinha a sua dose delas.
Da noite que ainda há pouco começou sobram murmúrios, sons líquidos de levadas, ribeiras e ilhas, ilhas de luz que no mar chamam os cardumes e os homens que os perseguem… 
Ó de bordo, rapazola! Tudo bem?… Olha que anda aí um grande cardume de atum rabilho que ainda afunda a tua casca de noz… – grita uma voz da escuridão, gargalhando a informação, ignorando o dilema que se passava a poucos metros do casco que molemente flutuava disfarçadamente em busca das presas, e uma declaradamente escondida ali tão perto. Assim como chegou, assim se foi a voz e o corpo, que o peixe não espera e conversa não enche o prato. É já tarde na noite do ‘Regresso a terra’, e mais ainda do seu piloto, carregado que está de dúvidas, perguntas, consciências que vêm e vão, num arredondar estranho de sentimentos de ganhos e perdas. O que tem ‘à mão de semear’ – estranha expressão para quem está no mar – é um espécime de peixe que muitos dos pescadores da ilha nunca irão ter oportunidade de ver de perto, quanto mais de o fisgar…
Assim, é como se amasse o peixe que ali está. Centímetro a centímetro de pele luzidia e fugaz, como as outras peles de que se recordava, mais bronzeadas, de sol e de mar, que em terra sempre o aguardavam. Ou mesmo das que se habituou a gostar menos, aquelas que o recusavam, que se negavam a entregar-se-lhe, mesmo que ele não conseguisse descodificar as pistas, mesmo que ele não tivesse do universo o conhecimento profundo dos sinais que aí estão desde o princípio dos tempos.
Por isso, não podia matá-lo por muito que o odiasse, não podia abraçá-lo por muito que o amasse, não podia largá-lo por muito que não se importasse…; e assim navegou a dúvida durante horas, e recordou manhãs, tardes e noites naquelas camas, naqueles colchões, naquelas ripas de madeira, naquele barquito a remos, que mais não pretendia que regressar a terra… ‘SALVA-ME!!!’ Acordou sobressaltado e por momentos desorientado, mas depressa se situou de novo. Ainda ressoava no seu cérebro o eco daquele grito aflitivo de que não sabia a origem, mais ainda porque à sua volta, em mar aberto, a calma tinha-se acomodado de novo, tinham partido barcos e atuns, em outras paragens estariam agora a navegar uns e outros. Recordou-se então da pescaria involuntária e conseguiu identificar aquele chapinhar que se erguia do exterior do barquito, um ligeiro movimento caudal do atum fortemente cingido às tábuas. Na fraca ondulação brilhante sob a lua sobressaía como que outra lua, que mais não era que um enorme olho que o fitava numa urgência que não conseguia explicar. Estremeceu com um arrepio involuntário na recordação daquela espécie de grito que o acordara e que, sem perceber como, sabia ter vindo do animal que despertara também, envolto na improvisada rede pesqueira que lhe limitava os movimentos.
Estranhamente, nem ponderou vantagens ou desvantagens, nas hipóteses de apresentar tal troféu entre os seus pares e que proveito tal lhe traria. Fazia parte de algo muito superior a si próprio, e no entanto sentia que não era mais do que um rapaz e o mar. Afinal, mesmo que subitamente se tornasse sabiamente velho, não queria de todo levar um esqueleto para terra… Decidido, soltou a rede dos toletes e recolheu-a, libertando o peixe que, por momentos, pareceu desorientado e indeciso sobre partir ou ficar. Mas foi apenas um lapso de tempo, como que um piscar de olhos do universo imenso que o observava. Dois vigorosos batimentos de cauda e só ficou um rasto de espuma que também rapidamente se diluiu na confluência de corpo e água que a lua azulava.
Dizem que é assim que muitas vezes as histórias acabam; talvez seja verdade, porque o rapaz que conduz o ‘Regresso a casa’ regressou a casa sem história para contar… Alguns dias depois, numa renovada troca de olhares, carinhos e beijos, o inusitadamente inesperado desamor desfez-se e a natureza retribuiu-lhe a magnanimidade…”