Rosa Panchera está de volta de Loma Linda para rever a terra que a viu nascer. Loma Linda engasta-se entre as serras de S. Bernardino e Vale Moreno, na Baixa Califórnia. Professos de fé adventista os seus habitantes adoptam hábitos saudáveis de alimentação, por excelência vegetariana, pelo que a cidade ergue uma bandeira de longevidade, distinguindo-se pela denominação de «cidade azul». De S. Bernardino soltam-se bons ares em benefício de uma mente sã, com reflexos em corpo são, contribuição desejada para que se mantenham os privilégios deste território.
Talvez por isso Rosa Panchera, que foi uma adolescente do meu tempo, cabeça dada aos sonhos e aos voos da poesia, crente no amor e na vida, talvez por isso, penso eu, também por seu pé de raiz aquática e pujança islenha, viceja ainda, de rosto fresco e voz cristalina, entre os velhos da mesma geração. Veio à ilha consolidar as amizades de sempre e os afectos familiares e andou pelas rotas da sua juventude, hoje em grande parte transformadas. Algumas valorizaram-se no respeito pelos signos culturais que perpetuam o perfil e a alma dos lugares. Panchera deu conta das mudanças mas foi dizendo que o coração eruptivo da ilha não mudou. «A minha terra é muito linda. Estes penhascos sobre penhascos, pesados e amplos vestidos de verde, são uma beleza». Falava dos penhascos com a devoção panteísta dos que acreditam que Deus é toda a Terra e toda a Terra é Deus. «Tudo isto só pode ser obra de um eminente criador».
A par do espanto e das mostras efusivas perante as paisagens do norte, ressalta o tom irónico com que de vez em quando exibe o seu pendor histriónico. Houve desde sempre em Panchera, rapariga urbana, amante de artes e de espírito livre, um jeito particular para se dar bem entre gentes variadas, uma evidente apetência pela multiculturalidade. Na prática do simples falar e abertura ao diálogo com povos das mais diversas origens, através de cantigas e aforismos, foi aprendendo as línguas que hoje lhe permitem aceder a uma alargada área de comunicabilidade, de entender a expressão popular no que ela contém de puro lirismo ou religiosidade, de emotivo ou patético, de inusitado, exótico e divertido. E não lhe escapa o linguajar da ilha, as cantigas que o folclore divulga, recorda o tom brejeiro e picaresco de algumas estrofes do cancioneiro popular e dos «bailinhos»: «Mandei o velho à serra / c´um pé de inhame cozido/O velho chegou a casa/ todo tremendo com frio/ cheguei-o p´ro pé do lume/ dei-lhe um copinho de vinho/ o velho ficou contente/ já queria brincar comigo/ ai coitad´ o velho/ ai coitad´ aquilo.»
Continuando a celebrar as belezas vulcânicas do solo ilhéu, pelas serras de Santana, entre expressões de espanto perante a exuberância dos penhascos, Rosa Panchera alça de novo a voz e solta outra tirada satírica, desta vez alusiva à toponímia do lugar. Arremeda na perfeição o acento original das vozes nas «cantigas de vilão» ao desafio: «Senhora Sant´Ana/ Senhor S. Joaquim/ eu vivo tão triste/ lembrai-vos de mim./ Senhora Sant`Ana / dai-me outro marido/ que aquele que eu tenho/ não dorme comigo./ Senhora Sant`Ana / minha mulher mente/ eu durmo com ela/ ela é que não sente».
Em época de festas populares de Junho a Setembro, resguardando a memória fatídica dos acontecimentos que têm assolado ultimamente as terras portuguesas, vale aos viventes a eventualidade alheatória das cantigas que dão vida aos arraiais, de Santo António a S. Pedro; da Senhora do Monte ao Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada, onde as trovas ao desafio se vão escutando ainda, ao som dos rajões, rebecas e harmónios. Até quando ? Diz o povo que é «para espantar mágoas»:
Eu canto p´ra espantar mágoas/ a cantar mágoas m´alembra/ que vale a pena cantar ? / vai-se o canto fica a pena».
Rosa Panchera regressará em breve a Loma Linda, levando da ilha uma imagem feliz. Faz parte da bagagem de viagens, além da grata memória do seu país, um amplo repositório de versos, um cancioneiro enriquecido com fados, rancheiras, bailinhos e canções de Maysa Matarazzo e de Frank Sinatra, além de um manuscrito de sonetos, que recita de cor, com a história de seus próprios amores.