Os pequeninos de Pedrógão

 

“A maior virtude de uma legislatura forte
não é o que pode fazer,
mas o que pode prevenir”
John Fulbright

64 mortos, + de 200 feridos, + de 150 casas atingidas pelas chamas, 26 empresas afectadas e 270 postos de trabalho perdidos (actualização em 24.06.2017).

Há números que não são estatísticas. Os que se referem aos mortos e aos feridos de Pedrógão, não o são com certeza.

Independentemente da qualidade (ou ausência dela) do jornalismo que relatou e deu a conhecer o martírio desta localidade portuguesa, a verdade é que nós, que somos os “outros”, graças aos meios de comunicação social e aos de difusão privada no âmbito das diferentes redes, sabemos – hoje – mais do que conviria ao poder político, mais do que aos eventuais responsáveis interessaria veicular.

Chegados aí, podemos também referir a prolixa prosa que tem sido publicada sobre o assunto: desde a mais insultuosa até às cartas abertas ao Primeiro Ministro. Muitos têm sido os textos, uns mais opinativos, outros com missões científicas, outros, ainda, sobretudo técnicos. Contámos, igualmente, com a prosa civicamente indignada, alguma mais emocionalmente implicada, outra ao serviço de determinada área ou interesse político. Todas registam o corolário de um conjunto de dados que permitem, sem esforço, afirmar que “em Pedrógão, tudo parece ter corrido mal”. A questão que permanece é, muito provavelmente, a que subjaz à mais vincada indignação: correr mal não poderia ser sinónimo de uma mortantade desta dimensão. Sabemos, claro, que bastaria ter havido uma só vítima e o horror já seria imenso.

Demoremo-nos, então, na questão do “interesse político”. Antes de mais, será necessário registar uma declaração de intenções: é meu entendimento que qualquer pretensão à recolha de um dividendo político, a partir de uma catástrofe, é uma infelicidade sem medida. É, em minha opinião, a destituição de toda a Ética (que não apenas a política) e uma desgarrada declaração de ausência de carácter.

Começo pelas declarações do Presidente da República. Creio que ninguém, de boa fé, pode sequer permitir-se acreditar que, no exacto momento em que proferiu as primeiras declarações, Marcelo – realmente – pensasse que “tudo tinha sido feito para menorizar a catástrofe”. A sua voz embargada e até alguma quase “atrapalhação”, nada habituais, no seu caso, revelaram o quanto sentiu o peso de uma dor maior e, também, o imperativo de consciência que ditou a imposição do dever e da responsabilidade de Estado sobre a vontade individual do cidadão Marcelo Rebelo de Sousa.

O Presidente terá “aprendido”, da pior maneira possível, o pesada exigência do mister a que se propôs e que tem recolhido um generalizado aplauso na sociedade portuguesa. Enganaram-se todos quantos, das formas mais subtis ou até mais marcadamente acintosas, duvidaram das suas capacidades para afastar-se do perfil de comentador televisivo e entregar-se totalmente à árdua tarefa de comandar a Nação. Não deixa, por isso, de ser de certa forma, má fé a atitude de quem o criticou por ser um comentador televisivo e, agora que ele, mais uma vez, de forma bem crua e sem lugar a dúvidas, provou exactamente o contrário, esperar que ele fosse “comentar”. Naquele preciso momento, o Presidente sabia bem, e melhor que ninguém, que tudo tinha corrido mal. No entanto, qualquer outro sinal da sua parte, teria provocado desmobilização e desistência e as consequências daí advindas seriam, com certeza, (ainda) mais desastrosas. Naquele momento, como agora, Marcelo sabia e sabe o que falhou.

Assim, enfrento quem, julgando-se filho de um deus maior, escreveu que o Presidente foi a Pedrógão “dar beijinho no dói-dói”. A formulação reduz o seu autor à mais rasteira escala de credibilidade. Num regime parlamentarista, como o nosso, o papel do Presidente da República, encontra-se, até por via das últimas revisões constitucionais, muito diminuído. O seu é quase exclusivamente um poder do que se designa como “magistério de influência” e foi isso que ele foi fazer ao local da tragédia. Reservou à esfera pública o que é público e restringiu ao âmbito privado o que possa ter sido fruto de uma atitude crítica e de chamada de atenção que lhe cabe como superior magistrado da Nação. Esteve irrepreensivelmente bem.

Chegou, porém, a altura em que a resolução dos problemas deve decorrer com celeridade e é fundamental serenar e legar confiança e conforto às populações afectadas.

O governo de António Costa sofreu um pesado rombo com o modo inábil e trágico, como enfrentou os incêndios. A gestão do período pós-catástrofe determinará o grau de fragilidade política que daí resultar. As responsabilidades, técnicas, humanas e políticas devem ser assumidas.

Desde o 25 de Abril até o dia de Pedrógão, todos os partidos com representação parlamentar se equivalem em responsabilidades políticas, directas ou indirectas, no descalabro em que se tornaram as políticas públicas respeitantes à floresta. Estão, por isso, todos implicados no favorecimento de condições, no terreno, para que tragédias destas possam ocorrer. O modo como esta calamidade sucedeu, a sua gestão e todas as dimensões do seu falhanço que resultaram no expressivo número de perdas de vidas humanas, é da exclusiva responsabilidade deste governo. Essa, a dura realidade.

O dever de respeito a todos quantos perderam, barbaramente, a vida em Pedrógão, é um imperativo de ética do Estado que visa, antes de mais, que este proporcione, aos cidadãos votantes, um dos mais poderosos valores políticos: o da confiança. Respeitar a memória dos que faleceram é, igualmente, uma forma de honrar os compromissos de cuidado às gerações futuras e de assegurar que estas possam, com serenidade, construir um futuro mais estável.

Fazer chicana política com o valor das vidas humanas perdidas é sempre uma terrível redundância, neste caso, é política de terra queimada. António Costa viu ameaçado o seu “estado de graça” político. O modo como decidir gerir o pós-trauma e explicar, aos portugueses, o que se passou e porquê, as responsabilidades políticas que entender assumir e fazer assumir, ditarão a sua futura credibilidade como Primeiro-ministro e, até, a validade futura da “geringonça”. À oposição exige-se exactamente o mesmo: que resista à tentação da politiquice e que colabore na construção de medidas legislativas que determinem o exercício da actividade política com sentido de Estado.

Alguns registos na imprensa e nos media sociais deixam entender que a definição de políticas de prevenção pode ter esbarrado – ao longo dos tempos – com actos que podem ser interpretados como decorrendo de “pressões” sobre a decisão política, vulgo, corrupção. Sabemos, hoje, que a cedência a essas pressões tem o valor de um crime.

Muitos são os países europeus que detêm – como Portugal – uma considerável dimensão de floresta. A Finlândia, por exemplo, tem uma área florestal equivalente a 26 milhões de hectares, ou seja, 68% da área total do país. As principais espécies são o Picea abies e o Pinus sylvestris e, também, Betula. Uma percentagem a rondar os 54% das florestas é privada e apenas 33% é pertença do Estado. 8% é propriedade de empresas e 5% por outros. A época de incêndios, na Finlândia, tem uma duração aproximada de seis meses (de Maio a Setembro). Um factor favorável é a orografia relativamente acessível (não há montanhas) e a rede de estradas florestais que é extensa. Há obstáculos naturais em grande número (188 000 lagos) que ajudam a restringir a dimensão dos incêndios florestais. Esta informação, disponível no site da FAO, inclui um esquema que a seguir mostramos e que identifica as chaves do sistema:

Os designados modelos de outros países devem servir de referência ou, segundo aquela moderna (mas enervante) designação de “exemplos de boas práticas” ou lá o que isso possa querer dizer que se adeque à situação. Não se trata de imitar, mas de estabelecer pontos de recurso. As nações são diversas. As soluções podem ser semelhantes considerando as devidas especificidades. O que não podem/devem é emanar de entidades que, exercendo pressões de diversa ordem sobre os decisores, invertam a escala de valores e induzam o Estado em acções contrárias ao propósito que o faz ser o que é.

A memória dos pequeninos de Pedrógão exige que assim seja.