Leia a homilia do bispo do Funchal na Festa do Corpo de Deus: “Embora sejamos muitos, formamos um só corpo”

Fotos Diocese do Funchal.

A Igreja diocesana viveu ontem um dos seus momentos altos. Embora as cerimónias tenham mudado da Igreja do Colégio para a Sé, foram muitos os fiéis que se associaram à Festa do Corpo de Deus num dia que voltou a ser feriado.

Os tapetes de flores cobriram as ruas por onde passou a procissão.

Eis a homilia de D. António Carrilho:

“A solenidade litúrgica do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo é entre nós designada como a festa do Corpo de Deus ou simplesmente, como acontece nas nossas Paróquias, a festa do Senhor.

Conhecendo o culto do Santíssimo Sacramento, tão bem incorporado na vivência cristã dos madeirenses, bem podemos chamar à Madeira e ao Porto Santo, as ilhas do Santíssimo Sacramento. Na verdade, a celebração da festa do Senhor em cada Paróquia permaneceu, juntamente com a festa do padroeiro, o momento mais alto do encontro da comunidade cristã como família de Deus, unida na Eucaristia.

A adoração ao Santíssimo Sacramento que hoje também aqui fizemos antes desta celebração, as orações, os cânticos e práticas devocionais referentes à festa do Senhor surgidos ao longo da história, assim como a procissão de louvor e ação de graças ao Santíssimo Sacramento, traduzem a fé no Senhor ressuscitado, que se faz companheiro das nossas jornadas, hóspede das nossas casas e dos nossos corações.

Todos apreciamos a beleza e a arte dos tapetes de flores sobre os quais o Senhor passa e que significam uma parte de nós mesmos, o nosso amor e a nossa gratidão. Esta beleza espiritual, porém, é Ele que a faz na nossa vida, não o podemos esquecer. A alma da criatividade dos cristãos, a razão da sua alegria, é dom do Espírito Santo.

Um pouco de História

Já em 1483 há registo de que a procissão do Corpo de Deus se realizava pelas ruas do Funchal e que, para além das autoridades e do povo que nela participavam, iam também os representantes e os elementos das principais corporações de ofícios da cidade, que se constituíam em confrarias religiosas.

Era costume integrar nesta procissão determinadas encenações festivas, numa alusão à passagem do livro dos Reis que nos mostra o rei David em festa à volta da arca da Aliança. Estas práticas foram progressivamente postas de parte para manter uma atitude religiosa de adoração e louvor a Jesus Cristo.

 

A partir da criação das paróquias, foram ainda instituídas as confrarias do Santíssimo Sacramento a quem compete hoje a organização da festa do Senhor em cada Paróquia. Estas confrarias foram e são importantes formas de testemunho e de devoção ao Santíssimo Sacramento, cujo espírito de serviço à Eucaristia importa promover entre as gerações mais novas, pois é no processo da sua transmissão que a fé atravessa a história.

A Igreja faz a Eucaristia

No livro do Deuteronómio, que ouvimos na primeira leitura, Moisés exorta o povo de Deus com estas Palavras: «Recorda-te de todo o caminho que Deus te fez percorrer durante quarenta anos no deserto». Para nós, este ato de memória aponta para o de Jesus na última ceia, que pede aos seus discípulos para fazerem memória do sacramento pascal. O louvor e a gratidão só são possíveis através deste ato de reconhecimento da presença viva de Deus na história. O memorial não nos fixa no passado, mas mostra que o passado faz parte do presente, tal como uma árvore, para estar viva, precisa de raízes.

 

A Eucaristia é o dom permanente da Páscoa de Jesus para a vida da Igreja e de toda a Humanidade. Para iluminar o mistério desta presença, que nos conforta e humaniza, que nos reúne e nos coloca em saída para o anúncio do Evangelho, precisamos de compreender que a Igreja faz a Eucaristia mas é a Eucaristia que faz a Igreja.

A Igreja faz, isto é, celebra a Eucaristia em resposta a um mandato de Jesus: “Fazei isto em memória de Mim”. Esta fidelidade da Igreja implica o sacerdócio comum dos crentes, proveniente do Batismo e exercido de maneira comunitária, em união orgânica com toda a comunidade do Povo de Deus.

 

Por sua vez, os pastores da Igreja receberam, pela ordenação sacerdotal, um ministério que é exercido, em nome de Jesus, na comunidade e para a comunidade. A Igreja que celebra a Eucaristia é congregada como corpo de Cristo e é ao mesmo tempo a Igreja que, deste modo, se edifica. Aquilo que ela oferece é o que ela recebeu. Por isso, a Igreja que celebra a Eucaristia responde à sua vocação e ao dom que lhe foi confiado, e que ela é chamada a transmitir.

Homens novos à imagem de Cristo

Por outro lado, na Eucaristia, a Igreja, graças ao Espírito Santo, recebe Jesus Cristo e é chamada a viver d’Ele, a ser o Seu rosto no nosso tempo. Neste sentido, repito, a Eucaristia edifica, faz a Igreja. Tal é a sua primeira razão de ser e o fundamento da sua missão: Jesus Cristo vem para o meio dos seus; Ele faz-Se o seu alimento e cada um, unindo-se a Ele, encontra-se por isso mesmo unido a todos os que O recebem.

A unidade e a comunhão no Corpo de Cristo é o cumprimento da nossa vocação cristã, porque nos torna, no Espírito Santo, homens novos à imagem de Cristo. É, pois, associando-nos ao mistério pascal de Jesus, à sua ação redentora, acolhendo livremente em nós a ‘remissão dos pecados’, primeiro fruto do sangue derramado na cruz, morrendo para nós mesmos e renunciando ao mal que nos divide e separa, que nós participamos no dom da unidade. Sem estas realidades espirituais de renúncia ao mal e ao pecado, não é possível construir a unidade.

 

 

A Eucaristia tem sempre um carácter e compromisso social, porque é exigência de comunhão com os outros (cf. Bento XVI, Sacramento da Caridade, 89). E a Igreja, porque vive da Eucaristia, é chamada a saciar as novas sedes e fomes da Humanidade, oferecendo o pão da amizade, da alegria, do perdão, da ternura, do sorriso amigo, da esperança e do serviço gratuito, enfim, a intensificar a solidariedade e a fraternidade, neste tempo de profundas mutações.

Jubileu da Dedicação da Catedral

Este ano celebramos a festa do Corpo de Deus aqui na Sé do Funchal, em memória agradecida pelos 500 anos da sua Dedicação, que ocorrerá precisamente no próximo dia 18 de Outubro. A igreja catedral é a expressão visível da nossa união espiritual com Cristo, precisamente na comunhão com o bispo diocesano, que tem aqui a sua Cátedra como sucessor dos Apóstolos, e na celebração comunitária da Eucaristia e de todos os outros sacramentos.

 

Aqui ressoam sempre de novo, como algo fundamental para a Igreja, as palavras de S. Paulo na carta aos Coríntios: «Não é o cálice de bênção que abençoamos a comunhão com o sangue de Cristo? Não é o pão que partimos a comunhão com o corpo de Cristo? Visto que há um só pão, nós, embora sejamos muitos, formamos um só corpo».

A comunhão no corpo e sangue de Cristo é o fermento da nossa unidade e esta comunhão faz de nós apóstolos, sal da terra e luz do mundo. Para isso, importa sempre deixar-se converter e transformar, a partir do Corpo e Sangue de Cristo, que recebemos no sacramento. «Torna-te aquilo que és», isto é, sê cristão pela tua palavra e pela tua vida – explicava Santo Agostinho, nas suas catequeses aos recém batizados.

 

A Catedral lembra-nos, também, que a nossa comunhão integra a história e a fé daqueles que nos precederam e que são sempre membros desta Igreja do Funchal, na qual continuamos solidários e a interceder uns pelos outros. A Catedral é Igreja- Mãe da Diocese, cuja maternidade nos leva a acolher Cristo em nós para O levarmos nós também aos outros pela palavra e pelo testemunho da nossa fé, esperança e caridade.

Eucaristia e vida quotidiana

Cristo, presente e entregue por nós na Eucaristia é o pão descido do céu, o pão da vida eterna, como nos diz no Evangelho. É a resposta plena e definitiva às nossas mais profundas aspirações, é o alimento do desejo de vida, de felicidade e de eternidade, que nos habita. Aquele que O encontra de verdade não pode deixar de dizer com S. Paulo: para mim viver é Cristo!

Quando esta Boa Nova é acolhida em toda a sua extensão e profundidade, descobrimos a dignidade de cada pessoa, aprendemos o respeito pelo outro, ousamos ir ao encontro de todos sem fazer aceção de pessoas, aproximamo-nos das feridas dos nossos contemporâneos e, como o samaritano da parábola de S. Lucas, procuraremos deitar sobre elas o «óleo da consolação e o vinho da esperança». E crescerá em nós a generosidade e a gratidão, valores tão necessários nos nossos dias.

A eternidade, que o Senhor nos promete na comunhão do seu corpo e sangue, começa já hoje, quando aprendemos com Ele a ser autenticamente humanos. A ação social dos cristãos não pode desligar-se deste testemunho fundamental de Jesus Cristo, que tem como ponto alto a Eucaristia celebrada e vivida no dia-a-dia. “Nisto conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros como eu vos amei”, dando a vida por amor.

Quem se alimenta do Corpo e do Sangue de Cristo entra no dinamismo eucarístico que faz do cristão um evangelizador e um anunciador deste amor misterioso de Deus no mundo. Não pode haver dicotomias entre a participação na Eucaristia e a vida concreta de cada cristão. O amor solidário que dimana da Eucaristia relança-nos no caminho das periferias existenciais, numa atenção vigilante e ajuda aos mais pobres, aos doentes, aos desempregados, aos sem-abrigo, às vítimas da injustiça, do terrorismo e das calamidades naturais, enfim a todos aqueles irmãos e irmãs que Deus ama e que a nossa sociedade descartável, como costuma dizer o Papa Francisco, tantas vezes esquece.

Louvor e ação de graças

Após esta celebração eucarística teremos a tradicional procissão pelas ruas da nossa cidade, ornamentadas com belos tapetes de flores. É Cristo vivo que vai passar! Esta bela tradição eucarística, vivida com fé e amor na presença real de Jesus na Eucaristia, bem nos faz recordar as caminhadas de Jesus, quando, outrora, percorria as estradas da Palestina, acolhendo todos os que O procuravam, privilegiando as crianças, os pobres e os doentes, “porque saía d’Ele uma força que a todos curava” (Lc 6,19).

Que Jesus, ao percorrer as nossas ruas e colocar o Seu olhar sobre aqueles que encontra nestes caminhos ou Lhe dirigem uma prece do silêncio das suas casas ou do sofrimento dos seus corações, a todos conforte na coragem da fé e na alegria da esperança!

E no contexto do Ano Jubilar da nossa Catedral, demos graças ao Senhor porque nos revelou o seu amor e nos acolheu na sua família; demos graças por todas as gerações que durante estes quinhentos anos souberam transmitir o dom da fé que receberam; demos graças ainda porque o Senhor da messe nos envia a sermos suas testemunhas.

Na Mãe de Jesus, a Senhora da Assunção, padroeira desta Catedral, queremos descobrir, de modo sempre novo, como “viver, em Igreja, a alegria de ser cristão”.