Voz do Mar

“Voz do mar, mysteriosa; 
Voz do amôr e da verdade! 
– Ó voz moribunda e dôce 
Da minha grande Saudade! 
Voz amarga de quem fica, 
Trémula voz de quem parte.
(…)
E os poetas a cantar 
São echos da voz do mar!” 

António Botto, in ‘Canções’

Os ilhéus, sabemos e saboreamos o mar de uma forma muito especial. Talvez, aqui, nas rochas insulares, tivessem os nossos antepassados encontrado uma relação mais próxima com este imenso destino marítimo que nos calhou e que a velocidade dos tempos e de outros meios de transporte tenha “roubado” às presentes gerações. Não deixamos, no entanto, de ter este amigo e vizinho por companheiro. Passeamos à beira-mar, olhamos o mar e namoramos a lua, mergulhamos e nadamos no mar. Algumas pessoas, mais afortunadas ou corajosas (podem até ser ambas) fazem mergulho e conhecem, desse modo, um mundo que ao comum dos mortais (os menos afoitos, talvez) é vedado.

Foto no Google.

Das notícias, são muitos os alertas, os relatos de atentados à vida marinha, à qualidade das águas marítimas, o horror que representa o facto de todos os dejectos serem despejados no mar, o facto de o mar ser o depositário dos lixos nucleares, de existir, já, um extenso “continente” de plástico, conhecido como o “oitavo continente”, que vagueia ao sabor das correntes do nordeste do pacífico a par de esperanças num mundo melhor.

Um destes dias, estreou o filme “Odisseia”, realizado em 2016, por Jerôme Salle, com um orçamento de 20m de Euros. O título é, sem dúvida, muito mais ambicioso do que o filme, apesar de uma inquestionável qualidade de imagem e uma interpretação irrepreensível de Lambert Wilson. Audrey Tautou consagra, uma vez mais, a coerente excelência das suas interpretações. Não se trata, no entanto, de grande cinema ou sequer de uma consistente “biopic” (filme biográfico). O realizador quis incluir uma visão menos conhecida do Comandante Cousteau, encenar os conflitos mais ou menos egoísticos que fundaram as decisões que o tornaram no primeiro (credível) ecologista da era audiovisual. Daí aos momentos razoavelmente “hagiográficos” relativos à reconciliação com o filho, regista-se uma grande inconsistência narrativa que pode comprometer a linguagem da sétima arte, que não faz justiça ao título e, com certeza, à intencionalidade que esteve na origem do projecto cinematográfico.

Assim sendo, vale a pena ver o filme? Claro que sim. Com a família, de preferência. Cousteau foi um imenso cientista, um amante deste planeta e das suas indescritíveis riquezas e colocou sempre os seus saberes e competências ao serviço do que tantas vezes chamou “as futuras gerações”. Legou à Humanidade um importantíssimo acervo de registos e de imagens, muitas delas, hoje em dia, infelizmente, já representações de um museu oceanográfico. Foi um inovador e um empreendedor, avant la lettre, sendo que, para a História da Humanidade que ele escreveu com as mais douradas letras, interessarão menos as “tricas” familiares que o acompanharam tanto quanto as marés nas quais navegou com a sua “Calypso”.

“Se quiseres construir um navio, não reúnas pessoas para recolher madeira e não lhes dês tarefas e trabalho. Ensina-lhes antes a amar a infindável imensidão do mar” (Antoine de Saint-Exupéry). Creio ser esse o mais precioso legado do Comandante Cousteau e que o filme exibe tão bem: “amar a infindável imensidão do mar”. Foi o que fez o navegador que, de explorador dos mares (financiado, aliás pela indústria petrolífera) passou a seu defensor. Relembrar a vida e o legado de Cousteau pode ser uma excelente forma de validar ou colocar em questão as decisões políticas que, de forma directa ou indirecta, interferem com as águas que nos circundam de vida. Os ilhéus destes rochedos, que Cousteau também visitou, têm no mar o fiel depositário de uma História que estamos sempre a construir.

“Bora lá ao cinema”

“Trailer” do filme em https://www.youtube.com/watch?v=Goy8YMc3KHg