Da claustrofobia democrática

Recentemente o eurodeputado Paulo Rangel veio a terreiro acusar o 1º ministro António Costa e o seu governo de estar a reeditar os tempos da “claustrofobia, da asfixia democrática”, expressão que, segundo o próprio, caracterizava a governação da responsabilidade do eng. Sócrates.

A tecla da alegada “asfixia” tem sido retomada pelo ex-1º ministro Passos Coelho, a propósito da rejeição por parte do actual governo dos nomes propostos para integrar o Conselho de Finanças Públicas.

Simultaneamente, sabe-se que o PSD, enquanto partido, e o próprio Paulo Rangel, na qualidade de vice-presidente do PPE (Partido Popular Europeu) continuam a conviver pacificamente com um regime autoritário, como o implantado na Hungria, pelo 1º ministro Viktor Orbán. Um regime que reescreveu a Constituição, colocou a justiça ao serviço do seu partido, o Fidesz, desvirtuou o sistema eleitoral, encerrou órgãos de comunicação social críticos do poder e, não satisfeito em ter colocado a máquina do Estado ao serviço de interesses privados e adoptado a corrupção como norma, escolheu como próximos alvos Universidades privadas e ONG independentes.

Neste quadro não admira que o director-adjunto do “Diário de Notícias” de Lisboa, Paulo Tavares tenha escrito que “comparando com o que se passa na Hungria, a nossa «asfixia democrática», que tanto tempo ocupa ao PSD, é brincadeira de criança” ou que o insuspeito colunista do “Público”, João Miguel Tavares tenha recomendado a Paulo Rangel um maior cuidado com as comparações.

Devo confessar que levo pouco a sério gente que é capaz de vislumbrar as maiores anomalias na casa dos outros e não enxerga o que se passa no seu próprio quintal.

Ou, por outras palavras, que autoridade política tem alguém, como o sr. Eurodeputado eleito pelo PSD, Paulo Rangel para apontar o dedo a práticas que classifica como anti-democráticas por parte de governos do PS se, por exemplo, no passado nada disse sobre o exercício de poder por parte dos seus correligionários do PSD/M?

Provavelmente Paulo Rangel consideraria (considera), como de resto alegaram muitos outros, em diferentes sectores da sociedade portuguesa, que os “excessos” do “jardinismo” não punham em causa os resultados da respectiva governação no seu todo. O mais provável, porém, é o seu silêncio ser “explicado” pela mesma circunstância que o leva a achar que o que se passa na Hungria não é relevante por tratar-se de um governo cujo partido integra o PPE. Isto é: aos correligionários permitimos tudo. Aos outros, aos adversários políticos é que não.

Ora, estando em curso uma tentativa, melhor dizendo, uma ofensiva em várias frentes, com o evidente propósito de procurar branquear o percurso político do timoneiro regional ao longo de 37 anos, importa avivar a memória.

Desde logo porque a história é feita de factos. Muitos dos quais não admitem “visões subjectivas”, por mais que faça jeito querer fazer crer que existem. E há factos que, quer se goste ou não, são indesmentíveis.

Ou seja, percebo que a criatura que se vangloria de ter estado mais tempo no poder que o dr. Salazar, não goste que se fale, em particular, do seu passado político anterior ao 25 de Abril de 1974.

O que, porém, é já intolerável é que falsifique a história. Isto é, que procure transmitir de si próprio um posicionamento que não teve. Designadamente que se tente colar à ala liberal do regime deposto em 1974. Fazendo-se passar por uma espécie de democrata antes do período aúreo dos vira-casaca. Vítima, inclusive, de cortes da censura! “Exame prévio” a que o jornal em que escrevia (o semanário “Voz da Madeira” não estava sujeito), como, aliás, recordou o jornalista Tolentino Nóbrega, em artigo publicado no jornal “Público” em 27 de Abril de 2014.

Ou o dito cujo já se esqueceu de um artigo publicado a 28 de Maio de 1973, em que assinalando a efeméride do regime instituído pela Constituição de 1933, não deixava margem para dúvidas: “o confronto honesto do positivo e do negativo realizado, embora sempre subjectivo, permite a conclusão de que o regime serviu o País”?! Ou de um outro, sugestivamente  intitulado “A ANP ou a bomba”, em que, também por essa altura, escrevia que não havia qualquer hipótese de terceira via, que só havia duas escolhas possíveis, ou era a da ANP (o partido único de então) ou a da bomba, cujo alvo principal era precisamente a tal ala liberal de que, agora, se diz próximo.

A lata é de tal ordem que, em recente entrevista a um matutino local, o dito cujo proclama que, no seu tempo de governação, “havia debate político” e afiança que “não fazia calar” os adversários. Debate político? Onde, quando e com quem? Que se conheça recusou sempre debates na televisão com os seus opositores, tendo participado apenas num confronto com o então líder do PS/M, Emanuel Jardim Fernandes. Ou referir-se-á às escassas presenças na Assembleia Regional, em que se limitava a produzir longas intervenções no encerramento da votação de programas de governo ou planos e orçamentos? Ou estaria a referir-se às inúmeras notas oficiosas a que frequentemente recorreu para procurar impor a sua “verdade”?

É caso para dizer que diria e que faria o PSD e Paulo Rangel se um 1º ministro se comportasse desse modo ou catalogasse o Parlamento de “casa de loucos”?!

Por outro lado, e na linha da estratégia de vitimização que sempre o caracterizou, o “patriota” no entender do sr. Silva, considera que hoje (aludindo a ele próprio) “procuram fazer calar as pessoas”.

Porventura, estaria à espera que a comunicação social continuasse a andar o dia inteiro atrás da criatura, a repetir ad nauseam as suas atoardas, a transformá-lo no centro do mundo. Contudo, mais uma vez, era melhor ter ficado calado. Logo agora que voltou à ribalta. Em que publica um livro recheado de, como agora se diz, “factos alternativos”. Que a RTP/M resolveu transmitir um folhetim semanal que vai já no 8º episódio e que abordou, até agora, apenas 1/3 do seu consulado, é que o homem resolveu fazer queixinhas. Ainda queria maior publicidade, ainda por cima de borla?!

Ora, quem se der ao trabalho de observar o modo como Trump, Erdogan, Órban, etc, se relacionam com a comunicação social, verá que, salvaguardadas as devidas dimensões, nada é novo. Por estas paragens, ao longo dos anos, a hostilidade do poder aos media foi igualmente uma das imagens de marca da respectiva governação. Desde a proibição de jornalistas de assistir a conferências de imprensa, ameaças públicas, alusões a que, se fosse na União Soviética, determinados jornalistas seriam fuzilados, rasgar jornais em público, nada faltou no desempenho do dito cujo. E convenhamos só não foi mais longe porque, enfim, o país integra a União Europeia. É que, se fosse no tempo da outra senhora, esses limites teriam certamente sido ultrapassados. Tratar-se-ia tão somente de materializar as marcas do seu ADN, da cartilha onde recolheu ensinamentos, a sua idiossincrasia. Dai que, pela minha parte, não tenho pejo em assumir que, neste particular, o dito cujo tem razão quando afirmou ao “Açoriano Oriental” que “o Trump é que me copiou”.

Características, atitudes, comportamentos, acções que, naturalmente, se reflectiram na respectiva governação. Ou seja, não basta rejeitar a existência de “défice democrático” na Madeira, com a alegação de que havia (há) eleições. No tempo do Estado Novo também havia eleições, existia uma Constituição, a de 1933, e isso não impediu as sucessivas “chapeladas” eleitorais. O que equivale a dizer que a democracia não se pode limitar ao acto eleitoral. E não é nenhum perigoso esquerdista que também o diz. Pacheco Pereira opina no mesmo sentido, como deixou expresso em recente artigo publicado no “Público”. De resto, é sintomático que o ex-timoneiro local não rebata a base da acusação de António Guterres: o caciquismo, a distribuição de empregos através da cor partidária, o controlo da Assembleia Regional e dos media regionais, ou a ostracização dos opositores. Ao fim e ao cabo, não o poderia fazer. Não tinha argumentos. Só se fosse inventando, como Trump, “factos alternativos” para contrariar os factos reais. Ou então, enveredar, uma vez mais, pela espiral do insulto como sucedeu em 1992 quando, após a ronda das 54 barracas, na festa do Chão da Lagoa, resolveu cantar “A Mula da Cooperativa” e posteriormente chamou ao eng. Guterres “mafioso e fariseu”.

Percebe-se que a tudo isto e a muito mais com a mesma abjecta dimensão, o eurodeputado Paulo Rangel não tivesse detectado qualquer sinal de “claustrofobia, de asfixia democrática”. Se assim não tivesse sido não teria contado com o apoio do PSD/M nas eleições para a liderança do PSD nacional em que enfrentou Passos Coelho. Nem com uma vitória de cariz norte-coreano na Região.

O presente texto já vai longo. Haverá certamente outras oportunidades para voltar ao assunto. Não por uma qualquer obsessão ou fixação, nem tão pouco para dar protagonismo a quem o não merece.

Faço-o apenas por uma questão de cidadania. De decência. Porque não é possível pactuar com quem geriu tão irresponsavelmente os dinheiros públicos, com as consequências que estão à vista, que o PAEF evidenciou e que o desemprego (o maior do país) expressa. E que, ainda por cima, procura branquear a sua imagem. Distorcendo a história. Desculpabilizando-se. Inventando conspirações, fantasmas, ameaças, a torto e a direito. Que gosta de salientar que não se “encheu”, mas, pelos vistos, não notou que, com a sua inércia, inacção, complacência, permitiu que muitos outros o fizessem, ao ponto de se terem transformado nos donos (regionais) “disto tudo”. Que continua a não assumir qualquer “mea culpa” pela quantidade enorme de obras inúteis, megalómanas que reivindica ter inaugurado, algumas das quais até já foram colocadas à venda em haste pública.

Não resisto, porém, a uma última nota. Para abordar a questão da Flama e do bombismo. Não só porque a criatura faz o elogio do bombismo, considerando que o papel da Flama não foi “desonroso”, “antes pelo contrário”. Como inventa uma “estória” de uma bomba que lhe queriam “pôr” (a eterna vitimização!). E agora até quer colher os louros do atentado travado contra Otelo Saraiva de Carvalho, por ocasião das eleições presidenciais de 1976. Isto é, confessa repetidamente que não sabia quem era ou não era da Flama. Mas, assume que foi o PSD/M que “conseguiu, a tempo, evitar um desastre”. Regozija-se de que “foi por minutos”. Como assim, não sabia (sabe) quem era a Flama, mas consegue evitar um desastre? Foi o espirito santo que o avisou, ou recebeu mensagem do além, ou de um paço qualquer?! Ou será que quer ser condecorado como um herói que salvou vidas?! Grande descaramento. Ou, em última instância, o dito cujo sabe mais sobre este período negro da história da Madeira mas falta-lhe a coragem para assumi-lo? A mesma falta de coragem que levou a efectuar uma viagem à Europa por ocasião do PREC, sob a protecção do seu padrinho e mentor, D. Francisco Santana (“um anti-comunista primário” e “mau político”, parafraseando o insuspeito cónego Damasceno de Sousa)?!

*Por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.