Travessuras toponímicas

Uma alteração toponímica raramente se justifica. Se as ruas, avenidas, praças, largos, becos ou travessas têm nomes, comummente aceites, não faz sentido alterá-los. Dificilmente, uma nova denominação será popularmente reconhecida, se alheia à memória do lugar. Além disso, implica transtornos para os residentes. Há vários casos em que prevalece o nome popular ou tradicional em detrimento da inscrição na placa toponímica.

A nossa relação com um lugar passa também pela toponímia. O nome da artéria ou do sítio faz parte da nossa identidade. Constitui também uma referência cultural, que importa descobrir e valorizar.

Antigamente, os topónimos nasciam da espontaneidade popular, gerada, por exemplo, nas relações de proximidade com moradias, estabelecimentos de notáveis, igrejas e capelas, instituições ou equipamentos urbanos… Assim temos: Rua do Esmeraldo, Beco do Gerardo, Rua de São Pedro, Rua da Alfândega, Largo do Corpo Santo, Rua do Frigorífico, Largo do Poço, Travessa do Forno, Largo do Pelourinho…

Na actualidade, as designações toponímicas resultam de deliberações municipais, de acordo com as motivações dos titulares dos órgãos autárquicos ou decorrentes de iniciativas de cidadãos. Na maioria dos municípios da Região, não há comissões de toponímia, o que faz com que a iniciativa, neste domínio, resulte quase exclusivamente da vontade do executivo camarário. Inexiste também documentação disponível em linha sobre toponímia, para além de mapas.

Em 6 de Dezembro de 2016, o presidente da Câmara Municipal do Funchal apresentou uma proposta de deliberação no sentido de atribuir os topónimos «Rua Henrique José de Sousa Machado» ao troço com início no cruzamento da Calçada do Pico, Beco do Amaro, Rua dos Frias e Caminho da Achada e termo na Rua do Paiol, e «Rua Alberto Sena Mendes», ao troço compreendido entre o actual Beco do Paiol e a Travessa do Paiol.

Justificou tal proposta com a solicitação conjunta que lhe tinha sido dirigida pelo representante da República para a Região Autónoma da Madeira e pelo comandante operacional e da Zona Militar da Madeira, com o objectivo da Câmara Municipal do Funchal perpetuar, da forma que considerasse mais adequada, as memórias destes dois militares madeirenses, naturais da freguesia de São Pedro, falecidos em combate na Grande Guerra.

Achou o presidente da edilidade funchalense de prestar reconhecimento e homenagem àqueles cidadãos através da toponímia, tendo em atenção a informação da Divisão de Fiscalização Municipal e o parecer favorável da Junta de Freguesia de São Pedro.

De acordo com a acta da referida sessão da Câmara (n.º 43/16), o vereador Bruno Pereira, do PSD, questionou se se tratavam de novos arruamentos ou de renomeação. Esclareceu então o vereador Miguel Gouveia, da Mudança, que eram novos arruamentos. Submetida a votação, foi a proposta aprovada por unanimidade.

Ora, quem conhece o Funchal, sabe muito bem que «o troço com início no cruzamento da Calçada do Pico, Beco do Amaro, Rua dos Frias e Caminho da Achada» não é um novo arruamento. Com uma simples e rápida consulta aos mapas do Google ou de outra qualquer aplicação, os vereadores, que desconhecem esta zona da cidade, teriam obtido cabal esclarecimento. Trata-se, na verdade, do Beco do Paiol, que existe há quase dois séculos.

Nesta zona, inaugurou-se, de facto, um novo arruamento com a extensão de 270 m, em 18 de Novembro de 2015: a ligação do Beco do Paiol à Rua do Paiol.

O Beco do Paiol, como o próprio topónimo indica, conduzia ao Paiol, construído nos anos vinte do século XIX e concluído em 1825. Era o acesso utilizado pelos militares, principalmente os da Fortaleza do Pico, quando se deslocavam ao armazém da pólvora.

A Câmara do Funchal entendeu dar-lhe agora a denominação de Rua Henrique José de Sousa Machado. Já lá se encontra a placa toponímica, debaixo da antiga, agora ilegível por desleixo do município.

Em meu entender, esta deliberação camarária de renomear o Beco do Paiol constitui um erro. Assim, a Câmara mata a toponímia falante. O novo topónimo nada diz sobre a história do lugar. É verdade que, naquela área, permanecem a Rua do Paiol, a Travessa do Paiol e um estreito Beco do Paiol. Mas aquele que era o caminho para o Paiol, baptizado com o nome de Henrique José de Sousa Machado, perdeu o significado histórico.

Parece que a Rua Alberto Sena Mendes, também decidida na reunião de 6 de Dezembro passado, não se concretizará no troço compreendido entre o actual Beco do Paiol e a Travessa do Paiol, devido aos protestos dos moradores, conforme Rui Marote escreveu no ‘Funchal Notícias’.

Decisão acertada seria repensar a homenagem, na toponímia do Funchal, ao tenente Henrique José de Sousa Machado e ao segundo sargento Alberto Sena Mendes, e enquadrá-la no conjunto de tantas outras personalidades ilustres, certamente inventariadas pela autarquia, que mereciam ter nome numa rua ou praça do concelho.

A toponímia faz parte do património cultural. Ajuda a conservar a memória dos lugares. Alterar topónimos não é uma prática recomendável, principalmente quando as antigas designações contam histórias.

 

* O autor escreve de acordo com a norma anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.