O pastoreio, entre mitos e novos desafios de recuperação das serras da Madeira

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Todos os ecossistemas têm uma determinada capacidade para se auto-regenerarem, assim que a pressão da perturbação cessa. Mas, nos casos em que a recuperação é muito lenta, a intervenção do Homem deve ser considerada. Em zonas com humidades elevadas, o repouso poderá ser suficiente para a auto-regeneração do ecossistema, uma vez que os microorganismos necessários para o processo existem naturalmente no ambiente mas, em climas mais secos, o repouso pode agravar a degradação e os micróbios necessários para a regeneração podem e devem ser fornecidos pelos herbívoros.

Fig 1- Zona seca com cobertura de gramíneas perenes em processo de senescência (Foto: José Marques)
Fig 1- Zona seca com cobertura de gramíneas perenes em processo de senescência (Foto: José Marques)

É verdade que a vegetação original da Madeira evoluiu sem a presença de animais herbívoros, se não considerarmos, por exemplo, o Pombo Trocaz e o já extinto Columba palumbus madeirense mas, também é verdade que foi o Homem que precipitou o desequilíbrio que agora ameaça a sua própria existência nas zonas a jusante, facto que torna urgente uma intervenção que faça reverter a avançada degradação que se observa nas terras altas e que não se compadece com o tempo que levaria a regeneração natural, interrompida muitas vezes pela própria interferência do homem nomeadamente com a aplicação de herbicidas, ou pela ocorrência de incêndios.

É hoje assumido, pela maioria dos cidadãos e também pelos atuais criadores, que as metodologias de criação de gado utilizadas no passado, em regime de pastoreio livre provocaram danos ambientais. Todos nós concordamos que, em áreas de Laurissilva, Urzal, e todas as outras já devidamente consolidadas e em equilíbrio, não fará qualquer sentido, introduzir o gado. Também podemos concordar que não existe, na Madeira, um historial de pastoreio que abone a favor da manutenção de efetivos animais nas serras, atualmente em estado acelerado de erosão, não por “culpa” dos antigos criadores, mas sim por falta de estratégia e gestão ordenada e adequada da atividade de pastorícia. Durante muito tempo, a criação de animais nas zonas de montanha, sem coberto vegetal arbóreo autóctone foi e, continua a ser, alvo de críticas, mas esta atividade se bem orientada, segundo diversas fontes internacionais credíveis, pode ser também a solução para a regeneração dos solos e para a prevenção de incêndios e aluviões que têm, sistematicamente, colocado em causa a segurança da população madeirense.

Nos artigos anteriores foram focados, alguns princípios fundamentais para a estabilização do solo e regeneração da vida que nele existe, condição necessária para que o mesmo cumpra as suas funções. No presente artigo, propomos revelar diversas questões técnicas que estão na base da tese do Pastoreio Holístico ou Regenerativo de Allan Savory, de que forma este pode acelerar a recuperação e consolidação dos solos e qual a relevância/importância da adoção desta metodologia para a segurança da nossa Casa Comum.

O Pastoreio Holístico surgiu com o propósito de apoiar a regeneração de ecossistemas bastante degradados, fundamentado na observação/reprodução do que acontece no mundo selvagem, sem a intervenção humana e assente na compreensão da complexidade das relações dos ecossistemas, bem como no contexto em que é gerido ou aplicado. É um sistema que coloca a espécie apropriada, na quantidade adequada, na hora certa, pelo motivo correto, para se cumprir os objetivos de ordenamento/regeneração da paisagem, mesmo que, no nosso caso, o resultado final pretendido, seja uma reprodução exacta da Floresta Laurissilva. Como referem Pickett & Rozzi (2000), “A conceção geológica, climática, biogeográfica, evolutiva e ecologicamente dinâmica da biodiversidade indica que, mais que a preservação das espécies ou comunidades de forma isolada, o objetivo central da conservação biológica é possibilitar a continuidade dos processos evolutivos e ecológicos”.

Esta metodologia permite, numa primeira fase, a regeneração rápida da vida do solo, conseguido através do “efeito manada” que consiste na passagem rápida, de um grupo de animais em determinada zona. Este princípio básico do pastoreio regenerativo, possibilita o consumo parcial da vegetação existente e o tombamento do restante para o solo, provocando uma barreira à incidência direta da luz do sol sobre o mesmo, permitindo o contacto da parte aérea da planta com a humidade existente no solo, assim como uma elevada inoculação microbiológica provocada pelo depósito de urinas e fezes dos animais, em trânsito. Assim, regista-se uma decomposição da matéria orgânica com benefício para o solo, desprende-se o dióxido de carbono gasoso que ao combinar-se com a água, forma o ácido carbónico (CO2 + H2O = H2CO3), um excelente solubilizador natural dos minerais necessários à nutrição das plantas. Esta mistura de humidade com carbono e a elevada carga biológica é por assim dizer a combinação ideal para o arranque do sistema e para a recuperação rápida das funções do solo, tema abordado no anterior artigo: “Biodiversidade subterrânea, a chave para a recuperação dos ecossistemas e das serras da Madeira”.

O material vegetal deitado à superfície do solo, por ação da passagem dos animais, reduz o impacto erosivo das chuvas fortes, permite que mais água seja absorvida em vez de escorrer à superfície e reduz a evaporação.

Fig 2 – Pasto sujeito ao efeito manada. A elevada carga fúngica permite a incorporação, no solo, do carbono produzido pela parte aérea das plantas. Esta é a dinâmica inicial necessária para que ocorram os processos naturais de um solo funcional. (Foto: José Marques)
Fig 2 – Pasto sujeito ao efeito manada. A elevada carga fúngica permite a incorporação, no solo, do carbono produzido pela parte aérea das plantas. Esta é a dinâmica inicial necessária para que ocorram os processos naturais de um solo funcional. (Foto: José Marques)

Quando o tombamento do material vegetal não acontece, a biomassa perde-se para a atmosfera. Com o calor do verão, liberta-se o dióxido de carbono e o solo volta a ficar desprotegido e seco, impedindo a regeneração natural. Nesta fase, dá-se uma alteração da flora, para a instalação da uma vegetação lenhosa, de crescimento rápido, de elevada combustibilidade e bem adaptada aos ecossistemas degradados, de que são são exemplo a giesta e a carqueja. Estas espécies, para além de possuírem sementes resistentes ao fogo, têm uma fisiologia e comportamento mais adequado ao solo nu e crescem mais depressa que as plantas autóctones plantadas, que por seu lado adaptam-se melhor a ecossistemas clímax como os da Laurissilva, com solos permanentemente cobertos, húmidos e bio-estruturados. Além disso, plantas como a giesta e carqueja crescem rapidamente, libertam grandes quantidades de sementes e são mais resistentes às doenças e a condições adversas, como a falta de água ou temperaturas excessivas. Estas são as principais causas de dominância e da conquista atual, e bem visível, nas nossas serras por estas espécies que vão dominando e colonizando novas áreas, incêndio após incêndio.

Fig. 3 – Estado atual de algumas zonas das serras da Madeira, onde é visível a dominância da giesta e carqueja (Foto: José Marques)
Fig. 3 – Estado atual de algumas zonas das serras da Madeira, onde é visível a dominância da giesta e carqueja (Foto: José Marques)

Outro dos princípios do Pastoreio Holistico é a adequação da espécie animal ao coberto vegetal existente e aos objetivos que se pretendem, no desenvolvimento presente ou futuro da paisagem/ordenamento da Zona a intervir. Se o objetivo for a eliminação de giesta ou carqueja, a cabra pode e deve ser introduzida durante a floração, altura, em que a planta está mais palatável para este ruminante e tendo em conta esta sua preferência pelas flores pode reduzir substancialmente a possibilidade de propagação destas espécies colonizadoras e dominantes.

Quando o objetivo for a disseminação ou “sementeira” de gramíneas perenes é preferível recorrer a bovinos que, em trânsito, são levados para áreas de gramíneas perenes com sementes já maduras e posteriormente conduzidos para zonas onde não exista ainda coberto vegetal definido ou com predominância de espécies anuais, para que as suas fezes carregadas de sementes possam colonizar novas áreas. Se, por outro lado, o coberto for já rico em gramíneas perenes, é possível utilizar as ovelhas ou vacas, mas apenas para reforçar a densidade do coberto e forçar o desenvolvimento radicular em profundidade, de modo a segurar o solo e aumentar a infiltração de água. Esta técnica, que junta os conceitos de produtividade das pastagens, necessidades e especificidades dos animais e ambiente, a começar pela vida do solo e o desenvolvimento da sua biocenose foi desenvolvida por Voisin (1957) e é fundamentada em vários princípios, dos quais destacamos o Tempo de Repouso da pastagem que se define como o período entre dois cortes ou pastoreios sucessivos e que varia de acordo com a espécie vegetal, a estação do ano, as condições climáticas, a fertilidade do solo e demais fatores ambientais sendo fundamental um intervalo que possibilite à planta armazenar nas raízes, reservas suficientes para o início de um novo rebrote. Considera-se que plantas colhidas com intervalos insuficientes ficam com o seu sistema radicular comprometido, uma vez que a planta mobiliza as reservas para a recuperação da parte aérea. O período de repouso é decisivo no sistema de pastoreio rotativo, pois determina o rendimento e perenidade da pastagem, o valor nutritivo da erva e o desenvolvimento do sistema radicular.

Fig. 4 – Impacto no desenvolvimento radicular em função da percentagem da planta consumida.
Fig. 4 – Impacto no desenvolvimento radicular em função da percentagem da planta consumida.

Este princípio é de capital importância quando o objetivo é a regeneração rápida do solo, na medida em que permite, em primeiro lugar, uma otimização da produção de biomassa, um aprofundamento e crescimento contínuo do sistema radicular, com consequências imediatas na fixação do solo e na incorporação de carbono e também na perenidade da pastagem. Quando não existe pastoreio, as gramíneas perenes iniciam processos de senescência e acabam por morrer, ao fim de alguns anos.

Fig. 5 – Fraco desenvolvimento de raízes de gramíneas perenes, no Pico do Areeiro (Foto: José Marques)
Fig. 5 – Fraco desenvolvimento de raízes de gramíneas perenes, no Pico do Areeiro (Foto: José Marques)

Outro dos princípios do Pastoreio de Voisin é o Tempo de Ocupação da pastagem que recomenda que o tempo de permanência dos animais, na parcela, em uso seja o suficiente para que as plantas não sejam pastoreadas mais de uma vez, num mesmo período de ocupação, sem deixar o solo exposto e sem comprometer a recuperação das plantas (fig 4). Este princípio pretende contrariar a exaustão da pastagem, uma vez que é sabido que se os animais permanecerem por longos períodos no mesmo espaço, dão preferência à ingestão dos rebentos novos, a parte mais nutritiva da planta, não permitindo que esta recupere do corte. A exaustão da pastagem é precisamente a situação que ocorria no passado com o pastoreio livre nas serras da Madeira, mas é também o processo que ocorre atualmente com o pastoreio considerado ordenado e autorizado em qualquer área vedada, onde não existe rotação de parcelas, mesmo com encabeçamentos baixos, uma vez que o comportamento seletivo do animal e o seu confinamento a determinada zona leva ao esgotamento das reservas das plantas impedindo que as mesmas se desenvolvam. Por outro lado, o facto de os animais andarem em rebanho ou manada e em movimento contínuo, como no tradicional sistema de transumância, praticada em todo o mundo, reduz a possibilidade de seleção ou escolha das plantas ou partes das plantas preferidas em situações normais, passando a demonstrar um comportamento mais voraz sob pena de serem penalizados perante a presença de outros animais que competem pelo mesmo alimento. A vaca, segundo alguns autores, é por natureza, mais eficiente do que outras espécies zootécnicas, no que diz respeito ao tempo de permanência mínimo, uma vez que evitam locais conspurcados pelas suas próprias fezes, abrigando-as a uma deslocação permanente e continua.

Os herbívoros, quando bem gerido o seu maneio e movimentação, são autênticas máquinas de transformação de biomassa em carbono no solo, contribuem para a valorização dos recursos disponíveis, transformando-os em proteína, reduzem drasticamente o risco de incêndios e podem criar as condições basilares para a regeneração rápida dos ecossistemas de montanha. O Pastoreio Holístico é um processo dinâmico que obriga a um acompanhamento regular e permanente dos animais, da pastagem e da paisagem, por forma a compreender a evolução do ecossistema e a promover práticas que aumentem continuamente a sua complexidade na busca de um sistema silvo-pastoril em equilíbrio ou de uma floresta clímax como a Laurissilva sendo que, neste ultimo caso, o objetivo implicaria, a determinada altura, a retirada dos animais para outro local, onde cumpririam outros propósitos, sejam eles económicos, sociais ou ambientais.

O gado, o homem consciente e um maneio holístico da pastagem poderão reverter a situação a que chegamos. Está provado histórica e cientificamente, com exemplos, que a introdução de animais, com espécies e maneio adequados é uma importante ferramenta para a regeneração das formações vegetais, permitindo a criação de solos férteis, capazes de assegurar a ressementeira natural dos cobertos vegetais, e ricos em matéria orgânica que permitem aumentar a retenção de água e do próprio solo.

No próximo artigo abordaremos o tema das plantações, como e em que fase da evolução do bioma solo devem ocorrer, bem como a descrição de outras técnicas a utilizar para a regeneração do sistema hidrológico e da sua importância na regulação do clima e retenção/conservação de água e em altitude.