Crónica Urbana: Não nos deixem sozinhos

sem abrigo

Rui Marote

O Funchal é cada vez mais um “expositor” dos sem abrigo. Alguns anos atrás a “montra” estava localizada junto ao Mercado dos Lavradores. Hoje está instalada no coração da cidade. O dormitório preferido é a entrada da Secretaria Regional da Agricultura e Pescas, no edifício Golden Gate. Já várias vezes alertámos para esta situação. Todas as noites os sem abrigo montam os seus “apartamentos” da pedra de cantaria, tendo como travesseiro uma caixa de plástico. Ao amanhecer, desmontam e guardam todos os utensílios como se fossem trouxas, nas portas do antigo café Golden. As portas do mesmo funcionam como autênticos guarda-fatos. Aos fins-de-semana, os sem abrigo têm o direito de manter-se no “apartamento”, uma vez que os serviços do Governo estão encerrados.

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O Governo, em vez de resolver o problema, projecta ali colocar um gradeamento de ferro.

Outra bolsa de pobreza que estava instalada nas redondezas da igreja do Carmo e que já esteve junto aos bancos das floristas, encontra-se agora nos bancos da Rua do Aljube. Mesmo em frente ao mini-mercado, que serve de posto de abastecimento dos pacotes de vinho que vão passando de mão em mão para apagar as mágoas. Neste grupo estão mulheres e até dois estrangeiros.

O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras já alguma vez abordou estes cidadãos, que incluem até romenos e que vivem da pedincha nestas áreas? O Natal aproxima-se e o aparecimento destes fenómenos multiplica-se… Aguardemos.

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Custa-nos falar da miséria. Recolhemos alguns testemunhos junto dos próprios. Falámos com o Vieira, 57 anos, ex-ajudante de pedreiro, que residia no bairro do Hospital, na casa de um sobrinho que o colocou na rua há quatro anos. É um alcoólico, que come à noite na distribuição de alimentos junto ao Mercado.

O Macedo, de 61 anos, referiu-nos que “não há nada pior do que viver na rua”. Trabalhou no engenho do Hinton, no Sheraton e na Insular de Moinhos. Está doente. Morava na Rua da Mouraria. Viveu em Lisboa com uma família africana. Está há sete meses na rua. Salientou que é “filho de duas mães: uma na terra, Madalena, que já faleceu, e outra que não morre, é a mãe do céu, Maria, que me ajuda”. Já foi três vezes à Cáritas solicitar roupa, diz, mas vem sempre de mãos vazias, respondem-lhe que “hoje não é o dia”.

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O Martins, há três anos na rua, tem 61 anos. Foi padeiro na padaria do Loja e serralheiro em diversas oficinas. Inválido, esteve no Brasil, onde trabalhou como segurança de um banco. Natural do Monte, anda à procura de um quarto. Dorme no Golden e recebe uma pensão de 291 euros.

A patriarca da zona é uma mulher que dá pelo apelido de Nóbrega, de 56 anos. Também vive no Golden. Conta que descontou durante 27 anos para a reforma. Foi empregada doméstica, cozinheira e serviu ao balcão e às mesas. Tem duas filhas casadas e seis netos. Os genros não a querem por perto. Esteve internada e regressou à rua. O seu maior desejo era ter uma dentadura… Encontrámos também um jovem de 36 anos, que nos afirmou estar na rua desde os 14, de nome Filipe. Entretanto, a Nóbrega partilhava a refeição que tinha na marmita. Dois espanhóis passaram também a fazer parte destas “famílias”.

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Não nos queremos substituir à Segurança Social, às assistentes sociais, à Cáritas ou outras instituições. Mas quando perguntávamos a estas pessoas se alguma instituição já os tinha abordado, eram unânimes: “Não”. No rosto destas pessoas estão gravadas imensas histórias nada felizes e sem uma solução no horizonte. Por enquanto, a casa destes sem abrigo é onde o coração está. Quer dizer, a casa que imaginam. A outra, a verdadeira, onde passam dias e noites, é mesmo na rua.