Angola: um regime desumano

h_sampaio

“ Angola não é um país bom para se viver, não é um país bom para se criar um filho, não é um país bom para nascerem crianças. Angola não é um país bom para nada. Os valores perdem-se constantemente. É uma sociedade anormal, vivemos numa sociedade anormal” (excerto de uma entrevista concedida ao semanário “Expresso” por Mónica Almeida, mulher de Luaty Beirão, luso-angolano, um dos 17 activistas condenados na passada semana a pesadas penas de prisão).

Haverá certamente quem considere as afirmações anteriormente transcritas excessivas, produzidas por alguém que se sente profundamente revoltada pela forma como a justiça angolana se comportou neste processo.

Não é, porém, uma opinião isolada. Infelizmente, ela é partilhada por outros angolanos e por muitos cidadãos que em Portugal e noutros países do mundo acompanham com atenção e preocupação o dia-a-dia desta antiga colónia portuguesa. E que, face ao conhecimento que têm da realidade angolana, sabem que, por muito duras que sejam tais declarações, as mesmas correspondem à verdade.

Quem como nós viveu em Angola, ainda que num curto período de tempo, e numa situação muito particular – cumprimento do serviço militar -, dificilmente pode ficar indiferente à evolução daquele país africano.

Um país rico em recursos naturais, dispondo das mais importantes reservas de petróleo, gás e diamantes de África, por conseguinte, de potencialidades e condições materiais susceptíveis de assegurar aos seus mais de 25 milhões de habitantes uma vida minimamente digna que, contudo, a esmagadora maioria da sua população continua a não usufruir.

 Longe vão, porém, os tempos em que os dirigentes angolanos, e não só, poderiam “justificar” essa triste e amarga realidade com as quase três décadas de guerra civil que assolou o seu território, na sequência da independência tornada possível com a reposição da democracia em Portugal, em 25 de Abril de 1974. É que essa guerra, entre a UNITA e o MPLA, terminou há precisamente 14 anos, em 4 de Abril de 2002.

E nada, entretanto, mudou. Tal como já nessa altura da guerra civil, uma certa elite angolana, uma boa parte ligada familiarmente ao ainda presidente José Eduardo dos Santos e outra representada por militares de alta patente afectos ao governo angolano, continuou a enriquecer e a viver sumptuosamente, em resultado em grande parte da exploração do petróleo e dos diamantes a que se foram e vão dedicando.

Intolerável é saber-se que, lado a lado, com esta vida luxuosa de uma oligarquia, a grande maioria da população angolana continua a não dispor das mais elementares condições de vida dignas.

Os números não enganam. Com efeito, ainda há dias, o Instituto Nacional de Estatística angolano revelava que, de acordo com o censo, realizado em 2014, mais de metade dos cerca de 5,5 milhões de agregados familiares angolanos, não têm acesso a água “apropriada” para beber e 31,6% têm nas lanternas a forma de iluminação. E já o saneamento básico – que o estudo considera como sendo a presença em casa de sanitas, pias ou com instalações ligadas a fossas séticas e latrinas – chegará, segundo o primeiro censo realizado em Angola desde a independência, a 60% das famílias.

Como é sabido, há uma epidemia de febre-amarela que assola Angola e que provocou já, desde 5 de Dezembro último, 218 mortos. Paralelamente, desde o início do ano, e de modo particular na província de Luanda, regista-se uma epidemia de paludismo (malária) grave que tem, juntamente com a febre-amarela, aumentado a procura por parte dos utentes das unidades de saúde, conforme revelou recentemente o ministro da Saúde de Angola.

O lixo acumulado nas ruas, falta de saneamento, dificuldades dos hospitais com falta de medicamentos, devido à crise financeira generalizada no país, em consequência da quebra das receitas fiscais com a exportação do petróleo, e as fortes chuvas que se têm feito sentir, nomeadamente em Luanda, são explicações que tem sido apontadas para a rápida propagação destas doenças nos últimos meses.

Entretanto, no passado dia 24 de Março, o jornalista angolano Rafael Marques, autor do livro “Diamantes de Sangue – corrupção e tortura em Angola”, que ficou célebre e que esteve na origem de uma vasta perseguição a que foi submetido por parte do regime angolano, escreveu, no seu site “Maka Angola”, uma reportagem efectuada no maior hospital do país, com o título “ A morgue”, profusamente reproduzida na comunicação social portuguesa, que constitui, como de resto foi assinalado, um autêntico “murro no estômago”, como se constata através da transcrição deste pequeno excerto: “ Na parte traseira da morgue, o cenário fala por si. Cada família leva o seu bidão com água, são todos amarelos, de 20 litros, banheira, sabão, o necessário para darem banho aos seus mortos. Conto mais de 20 corpos espalhados, a serem lavados ao ar livre pelos familiares, vestidos, aprumados para o adeus final aos entes queridos. No chão, as águas não escorrem. Misturam-se com sangue, com os plásticos abandonados, luvas, máscaras, panos, roupas retiradas dos mortos. Há uma fossa entupida, com águas putrefactas, no mesmo local”. Impressionante, arrepiante!

E tudo se torna ainda mais revoltante com o cenário em redor, deveras contrastante que Rafael Marques descreve, nestes termos: “ Da entrada da morgue vê-se a abóbada rosada da nova Assembleia Nacional, erguida do outro lado da estrada a um custo de cerca de 278 milhões de euros (pagos através de fundos secretos à disposição do Presidente). Foi inaugurada em Novembro passado, imitando o Capitólio dos Estados Unidos, mas as obras ainda estão por concluir. Os deputados foram informados que a manutenção mensal do edifício custa o equivalente a cerca de 1,5 milhões de euros. Um pouco mais acima é a Cidade Alta, a menos de 500 metros, onde se situa o Palácio Presidencial. No mesmo quarteirão da morgue está o Ministério da Saúde. Do outro lado do muro está o maior hospital pediátrico do país, que ali deposita mais de 20 crianças por dia.

 Um quilómetro a norte está a Marginal de Luanda, símbolo da ilusão de modernidade do regime do MPLA e de José Eduardo dos Santos. É uma obra de requalificação da Baía de Luanda, que custou cerca de 322 milhões de euros. Tem palmeiras importadas da Flórida, nos Estados Unidos da América. Os jardins são bem tratados. Têm sempre água. A Baía é bonita, não importa o mau cheiro das fossas que despejam para lá. Na morgue, cada um leva o seu bidão com água para cuidar dos finados”.

E como se tudo isto não bastasse, também na semana passada, o semanário angolano independente “Expansão” fez as contas da saúde e revelou que só a Casa de Segurança do Presidente da República tem um orçamento para 2016 três vezes superior ao dos nove principais hospitais em Luanda, no total: 28,4 mil milhões de kwanzas (157 milhões de euros) versus 90,5 mil milhões (quase 500 milhões de euros). E o referido semanário acrescenta que apenas 7,7% do Orçamento Geral do Estado é para a Saúde, três vezes menos que a Segurança e Defesa, sendo esta a percentagem mais baixa da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral, segundo dados da Organização Mundial de Saúde de 2013, que abrange dez dos 15 Estados-membros.

Ora, foi neste mesmo país, que na pretérita semana, os já referidos 17 jovens activistas angolanos foram condenados a pesadas penas de prisão por lerem um livro “perigoso” à mesa de um café em Luanda. E para garantir penas exemplares, o Ministério Público, no decorrer das alegações finais, mudou a acusação. Luaty Beirão e os seus amigos deixaram de ser suspeitos de tentativa de derrube do Presidente angolano para passarem a ser suspeitos de pertencer a um bando de malfeitores.

A condenação suscitou naturalmente reacções da comunidade internacional e na Assembleia da República o PS e o BE apresentaram votos de protesto por estas flagrantes violações de direitos, à liberdade de expressão, de pensamento e de reunião, consagrados, de resto, na constituição angolana.

 Votos que foram rejeitados em conjunto pelo PCP, PSD e CDS. Uns, o PCP, por razões ideológicas, por afinidades com o MPLA. A direita para não incomodar os interesses económicos angolanos em Portugal e vice-versa. Isto é, fizeram prevalecer o dinheiro sobre os princípios e os valores.

Curiosamente, para justificar o voto contra, o actual líder parlamentar do PSD classificou o voto de “uma ingerência” na justiça de Angola, mas em 2003, esse mesmo partido já não teve qualquer problema em votar favoravelmente um texto que denunciava uma pena “escandalosamente pesada” de 12 activistas políticos, opositores ao regime cubano. Quanto ao CDS, não foi certamente por acaso que, pouco tempo antes de ser investido nas funções de vice-presidente da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, Paulo Portas insurgiu-se contra “a judicialização da relação entre Portugal e Angola”.

 Mas, custa sobretudo a entender como é que um partido que reuniu nas suas fileiras tantos militantes que foram severamente condenados em Portugal pelos tribunais plenários de triste memória e que se empenhou no combate a um regime, como o deposto em 25 de Abril de 1974, que não assegurava à esmagadora maioria dos seus cidadãos direitos básicos elementares e condições de vida minimamente dignas, não se distancie de actos que têm muitas semelhanças com os praticados pelos referidos tribunais plenários – que, por isso mesmo, não deveriam deixar ninguém indiferente -, e de uma realidade tão revoltante.

Apetece-me por isso terminar citando, uma pequena parte de um texto publicado no passado sábado no jornal “Público”, da autoria de ex-líderes do CDS/PP (de quem politicamente estou nos antípodas, mas que sintetiza o que está em causa, com esta decisão judicial angolana): “Quem não se chocou com a tremenda brutalidade das sentenças (…) é porque perdeu, se alguma vez teve, noção de lei e de justiça”.

*        Texto escrito, por opção, de acordo com a antiga ortografia.