Pedagogo avisa: “Insistir na ideia de mais exames é reflexo de ingenuidade pedagógica”

Já imaginou se a escola deixasse de ter toques de entrada e salas de aula? E se os alunos, ao invés de estarem sentados a seguir a matéria debitada pelo professor, pudessem aprender em espaços abertos, realizando projetos em equipa e com acesso às novas tecnologias, projetos do seu interesse e capazes de os fazer felizes?

Utopia? José Pacheco, defensor da chamada gestão democrática na Educação, diz que nem por isso.  Fundador da ‘Escola da Ponte’, projeto pioneiro que há 40 anos revolucionou as convenções quanto a modelos de ensino e aprendizagem no país, o docente acredita que o debate está lançado e a mudança a caminho. Mesmo em Portugal, onde o sistema educativo apresenta graves sinais de rutura.

O pedagogo estará esta terça-feira, 5 de abril, no Funchal para falar sobre um novo paradigma já em ebulição em algumas escolas da Europa e, de forma embrionária, na Madeira.

escola_lombo_guiné

Nos últimos anos, José Pacheco tem estado ligado ao Brasil, onde encontrou apoio e espaço para dar largas às suas ideias, algo que não aconteceria em Portugal apesar dos aplausos à ousadia e resultados da experiência ‘Ponte’, um projeto de formação integrada, em que a ética e os valores são tão importantes como os conhecimentos.

Recentemente, uma escola da Região quis implementar uma resposta inovadora, tentando os passos iniciados há 40 anos em Vila de Aves, Porto, e convidou-o a orientar docentes e processos. Trata-se do projeto Inov@Louros, uma iniciativa que arrancou este ano letivo, na Escola Básica dos 2º e 3º Ciclos dos Louros, envolvendo turmas de alunos considerados “difíceis”, aqueles que foram sendo empurrados para o estigma dos ‘chumbos’ e dos ‘maus’, para quem a escola tradicional pouco ou nada significa.

Na véspera da conferência “Aprender em Comunidade – Nova construção social”, a realizar no auditório da APEL, a partir das 19h00, José Pacheco revela ao FN que a chave da mudança está nos professores, ainda fortemente condicionados por “equívocos”, tanto na sua formação como na cultura profissional.

josé pacheco

Funchal Notícias – Recentemente, um estudo da Organização Mundial de Saúde sobre os adolescentes concluía que os alunos portugueses são dos que menos gostam da escola, sobretudo das aulas. Que leitura faz destes números? 

José Pacheco – A leitura é simples: jovens do século XXI são ensinados por professores do século XX, que recorrem a um modelo epistemológico do século XIX. Quando um jovem se mostra desinteressado, desmotivado, está doente. As escolas estão doentes, os professores estão doentes. O diagnóstico está feito, desde há muito tempo. Falta encontrar a cura. Esperemos que ela chegue a tempo de não vivermos a situação em que o Japão se encontra. Nesse país, são muitos os jovens que se suicidam no primeiro dia de aulas de cada ano letivo.

FN – Por onde, por quem e como mudar?

JP – Algo mudará quando as escolas se reorganizarem, operando uma definitiva rutura com o velho paradigma, quando forem eliminando erros do modelo atual de formação. Não duvido que as universidades disponham de excelentes formadores, mas que praticam uma formação reprodutora de um modelo escolar e social do século XIX. A formação de professores continua imersa em equívocos. Ainda há quem acredite que a teoria pode preceder a prática e encha a cabeça do formando de tralha cognitiva, ingenuamente acreditando que ele irá “aplicá-la” na sala de aula. Sabemos que a velha escola há de parir uma nova educação. Mas as dores do parto serão intensas, enquanto as “naturalizações”, as “certezas”, as crenças ministeriais, a tecnocracia e a burocracia continuarem a prevalecer em domínios onde deveria prevalecer a pedagogia.

FN – Estará a própria sociedade portuguesa – pais, empresas, universidades – preparada para compreender e apoiar a mudança que se preconiza?

JP – Infelizmente, a sociedade portuguesa, tal como qualquer sociedade que enferma do modelo de escola da revolução industrial, ainda não está preparada para compreender e apoiar a mudança que se preconiza. Mas, se considerarmos que aquilo que os pais mais desejam é que os seus filhos sejam sábios e felizes, uma significativa parte da sociedade está consciente da necessidade de mudança. E observo que algumas universidades iniciam caminhos de transformação das suas práticas. Aliás, o documento recém-publicado pelo atual governo, anunciando reformas no sistema educativo, refere a necessidade de priorizar a inovação na Universidade.

Sou esperançoso. Acredito na possiblidade de, ao cabo de uma ou duas décadas, termos um cenário bem diferente do atual, com a sociedade, as empresas e universidades a apoiar processos de mudança. Haja esperança.

Alunos-Exames

FN – O atual governo anulou as provas nacionais de 4º e 6º anos, substituindo-as por provas de aferição nos 2º, 5º e 8º anos, que afinal não serão obrigatórias este ano letivo, deixando ao critério das escolas a realização das mesmas. Ou seja, em poucos meses alteraram-se regras que, afinal, já não são regras. Que mensagem está o governo a transmitir à comunidade educativa e à sociedade em geral?

JP – O atual governo talvez esteja a resistir à tentação da examocracia, (à praga dos exames nacionais). Acabamos de sair de um período de governação durante o qual se insistiu na ideia de que realizar mais exames contribui para a melhoria das aprendizagens, o que constitui uma medida de política educativa equivocada. Porque não é a preocupação com o termómetro que faz baixar a temperatura.

Quando escutava os anteriores responsáveis pelo Ministério da Educação falar da Finlândia como referência de boa qualidade da educação, eu perguntava se falavam da mesma Finlândia que eu conhecia. Porque os via introduzindo mais provas, quando a Finlândia já havia prescindindo de realizar exames.

Um exame pouco, ou mesmo nada, prova. É um dos mais falíveis instrumentos de avaliação. Talvez por isso, a Finlândia os tivesse abolido… E, se os anteriores responsáveis ministeriais insistiram em os multiplicar, isso só pode ser reflexo de ingenuidade pedagógica.

FN – O que esperaria que acontecesse nos próximos quatro anos em Portugal para que se considerasse uma reforma de fundo ou, pelo menos, um indicador de que algo de diferente estaria em curso?

JP – Talvez a atenção dos responsáveis ministeriais deva voltar-se da Finlândia para a Catalunha. Na Catalunha, colégios jesuítas dispensaram aulas e testes, eliminaram cursos, exames e horários. Derrubararm as paredes de suas salas de aula e criaram grandes espaços de trabalho em equipa, onde se adquire conhecimentos através de projetos, com acesso a novas tecnologias. Um alto responsável jesuíta afirmou: Em vez de olhar para o diário oficial, olhamos para o rosto das crianças e ajudámo-los a desenvolver os seus projetos de vida, para descobrirem os seus talentos. Juntamente com a família e a internet, procuramos construir pessoas.

São boas notícias. Por estas e por outras, mantenho a esperança de que os titulares do poder público delas tomem conhecimento e façam aquilo que é preciso fazer.

FN – Chegou a ser contactado por este governo ou pelo anterior para expor as suas ideias?

JP – Fui contatado pelo governo, mas não o de Portugal… Por exemplo, fui convidado pelo Ministério da Educação do Brasil para integrar um grupo de trabalho encarregado de identificar, acompanhar e avaliar projetos considerados inovadores. Esse grupo de trabalho exerce a sua tarefa junto do Gabinete do Ministro, buscando encontrar indicadores de boa qualidade na educação, que permitam definir diretrizes de política pública. Estamos na segunda fase da missão e outras colaborações com o governo brasileiro hão de acontecer. Não nego a minha colaboração a um poder público que coloque seriedade nas iniciativas de política educativa.

escola da ponte josé pacheco

FN – O projeto ‘Escola da Ponte’ foi uma pedrada no charco. No entanto, e apesar das suas virtudes e bons resultados, acabou por não replicar-se nem ganhar solidez no sistema de ensino nacional. Possíveis razões?

JP – Os relatórios de avaliação externa realizados por comissões nomeadas pelo Ministério da Educação, realizadas por avaliadores independentes, revelam que, quando transitam para outras escolas, os alunos da Ponte alcançam melhores notas do que os alunos de outras escolas conseguem alcançar. E, se no domínio cognitivo isso acontece, muito mais significativos são os níveis de desenvolvimento sócio moral. É grande a preocupação com a vertente ética, e sabemos que o desenvolvimento estético anda ao lado do desenvolvimento cognitivo, sendo mutuamente influenciados. Não fragmentamos os saberes. Estudos realizados com adultos formados ao longo dos últimos 40 anos demonstram que os nossos ex-alunos são pessoas socialmente integradas e realizadas. Talvez possa acrescentar que a Escola da Ponte provou que é possível outra educação, aliando excelência académica à inclusão social.

FN – Passados estes anos, qual o balanço?

JP – A Escola da Ponte tem inspirado centenas de projetos em diversos países. Mas não pode, nem deve ser replicada. Ela apenas prova a possibilidade de operar rutura com o modelo escola obsoleto, que ainda vigora na maioria das escolas, apenas demonstra a possibilidade de cada aluno poder aprender e ser feliz. Porém, ninguém é profeta na sua terra…

FN – Decidiu, em determinada altura, trabalhar no Brasil. Por desafio ou desilusão? Esperava mais das autoridades portuguesas, no sentido de apoiar a implementação do projeto de forma abrangente?

JP – Ao longo de quatro décadas, as autoridades portuguesas quase sempre nos criaram dificuldades, ou nos votaram ao ostracismo. Mas não nutro ressentimento, sou otimista e nunca me desiludo. Fui para o sul, apenas precisaria de me afastar de uma escola onde labutei durante mais de trinta anos, para que novas equipas continuassem o projeto. Acredito nos professores. E encontrei no Brasil, como havia encontrado em Portugal, muitos professores que possuem os dois requisitos básicos da profissão: competência e ética. Acompanho os seus projetos e com eles aprendo. Isso basta-me.

escola dos louros anexo

FN – A Escola dos Louros, através do projeto Inov@Louros, está a implementar este ano, junto de alunos de Percursos Curriculares Alternativos (PCA), princípios da chamada “gestão democrática” na Educação. Como encara a atitude da escola ao assumir este desafio?

JP – A Escola dos Louros ousa empreender um caminho de transformação, através da referência a uma matriz axiológica, a uma visão de mundo e sociedade traduzidas no seu projeto educativo. De modo responsável, ousa reconfigurar as suas práticas, assumir formas específicas de organização do trabalho escolar, em dispositivos de relação, nas atitudes do dia-a-dia, viabilizando práticas de educação integral. Encaro essa escola como potencial protótipo de uma boa educação.

FN – Como está ser implementado o projeto (fases, metodologias, avaliação, docentes, articulação e intercomunicabilidade com currículo nacional)?

JP – O projeto está no seu início. Urge conceder-lhe tempo, aguardemos os seus efeitos. Creio que a equipa que o desenvolve é composta por professores prudentes, que não consideram os alunos cobaias de laboratório, e isso dá-me garantias de sucesso.

FN – O que ganham estes alunos, em concreto, quando comparado com o modelo convencional? Será a sua formação válida e reconhecida?

JP – A sua formação será válida e reconhecida. E irá além do mero alcançar de boas notas, irá contemplar a multidimensionalidade do ser humano. O novo “modelo” de escola não visará apenas o desenvolvimento da cognição, mas também o do afeto, da emoção, da ética, da estética etc. Isto é, uma formação, uma educação integral.

FN – Quais os condicionalismos que se colocam às escolas no desenvolvimento de projetos desta natureza? São os mesmos de há 40 anos?

JP – As escolas carecem de espaços de convivência reflexiva. Precisamos compreender que pessoas são aquelas com quem partilhamos os dias, quais são as suas necessidades (educativas e outras), cuidar da pessoa, do professor, para que se veja na dignidade de pessoa humana e veja outros educadores como pessoas. Por isso, o principal condicionalismo, o maior obstáculo à mudança, é o tipo de cultura profissional dos professores. Se os professores se dispuserem a reelaborar a sua cultura pessoal e profissional, os projetos educativos serão efetivamente concretizados.