Patrícia Sumares: arte apontada ao coração

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Luís Rocha (texto e fotos)

Enquanto metáfora da sociedade contemporânea, é um trabalho de notável força e pertinência, capaz de ir direito ao coração do fruidor. A instalação da artista plástica madeirense Patrícia Sumares pode ser vista até Fevereiro no Colégio dos Jesuítas, local para o qual foi cuidadosamente pensada e onde o seu enquadramento funciona de modo quase perfeito. É nos antigos corredores daquele vetusto edifício que se pode ver um autêntico ‘tapete’ de fragmentos de cerâmica, representando rostos. Alguns ainda se encontram inteiros, outros foram reduzidos a migalhas pelos pés dos visitantes que inauguraram a mostra, no dia 22 de Dezembro.

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A inauguração desta exposição foi o culminar de um programa que incluiu conferências e debates realizados na reitoria da Universidade da Madeira pela agência de promoção de artistas madeirenses ‘Exit Artistas’, de Luís Guilherme de Nóbrega, antigo responsável pela programação expositiva do Centro das Artes Casa das Mudas, hoje convertido em museu de arte contemporânea. Luís Guilherme é o marido de Patrícia Sumares, ela própria ex-responsável pela programação de exposições na Galeria dos Prazeres, e auxiliou-a de muitas maneiras na concepção desta exposição – inclusive partilhando o extenso e interminável labor de modelar as diferentes faces que se destinavam a ser calcadas pelos visitantes da exposição.

Foi um trabalho que durou mais de um ano e cuja intensidade pudemos testemunhar. Um longo percurso para elaborar uma obra artística que celebra, em si mesma, a efemeridade das pessoas e das coisas, e a transitoriedade da própria existência.

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‘Tu és pó e ao pó voltarás’ é como se intitula a instalação. E a mesma ‘mexeu’ decididamente com os sentimentos dos que estiveram na ocasião inaugural. Ao contrário de muitas obras contemporâneas, o seu significado é facilmente apreendido por quem a vê, e a mesma contém uma violência à qual é difícil permanecer impassível. Afinal, trata-se de caras de outros seres humanos, aquelas que somos convidados a esmagar com os nossos próprios pés, ao percorrermos o trilho.

A artista põe o dedo na ferida. Numa época fortemente individualista, em que a ambição pessoal se sobrepõe a todos os outros valores, em que a solidariedade é praticamente uma palavra vã, quantos de nós, para alcançar dinheiro, sucesso, reconhecimento, não nos predispomos a calcar sem piedade outros seres humanos para conseguirmos ascender às posições que ambicionamos? Muitos, certamente, que passam nesta quadra natalícia por bons cristãos, não terão a consciência tranquila. E é nela que Patrícia Sumares nos convida a pôr a mão, analisando aquilo a que estamos dispostos, para manter ou sacrificar a nossa integridade.

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Por outro lado, as relações entre arte e poder dominaram o debate realizado na reitoria da UMa, paralelo à exposição e que, numa acção de formação creditada pela Secretaria Regional da Educação, congregou no auditório múltiplas personalidades madeirenses e continentais do mundo da arte, entre as quais professores universitários, comissários de exposições e galeristas, como José Pedro Regatão, Miguel Amado, Duarte Encarnação, Vítor Magalhães ou Arlete Alves da Silva, entre outros.

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Como refere Luís Guilherme de Nóbrega num texto alusivo a esta exposição e apresentado numa das paredes do Colégio dos Jesuítas: “A instalação da artista plástica Patrícia Sumares questiona o mundo actual transversalmente com o material que mais gosta de usar numa combinação e diálogo copulativos ao espaço do Colégio dos Jesuítas onde o registo de atividade religiosa, militar e civil complementaram a história deste local. A argila surge da mistura do pó com a água num material por si intimamente relacionado com a escultora e com a sua forma de intervencionar em silêncio como se de uma oração se tratasse, multiplicando-a através da repetição contínua das peças. Fruto de várias experiências vivenciais no percurso da artista, esta nova abordagem, sem divergir da figuração habitual da sua obra, remete-nos para os conflitos étnicos, culturais, económicos e políticos da actualidade e levam-nos a uma descredibilizada forma como a nossa sociedade, em especial a detentora do poder organiza, gere e decide sobre os recursos que legitimamente são de todos nós (…) Nesta instalação a artista coloca o público numa situação de co-criador, o qual é também responsável pela constante mutação estética da obra (…)”.

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A instalação pode ser visitada, como dissemos, até Fevereiro e até lá estará em permanente transformação. Ao lado do extenso corredor por onde se estende o ‘tapete’ de caras realizadas em argila, Patrícia Sumares preencheu um outro pequeno corredor, mostrando como a instalação se encontrava à partida, quando ainda estava absolutamente intacta. O acto inaugural foi, naturalmente, mais intenso do que serão visitas subsequentes à exposição, embora estas se mostrem indispensáveis até para constatar o processo transformador. Mas foi quando as primeiras caras foram partidas sob os pés dos fruidores que as emoções estiveram ao rubro. E foram devidamente registadas com recurso a vídeo, projectado na própria ocasião. É interessante observá-las. Algumas pessoas fizeram o seu percurso destruidor de uma forma intensa e impiedosa, quase catártica. Finalmente, sentiram a necessidade de desviar-se para o lado, deixando de calcar as faces dos seus semelhantes. Outras iniciaram o percurso pelos lados, para depois finalmente se decidirem a encetar o seu papel activo na transformação da obra, esmagando algumas caras. E não faltou quem procurasse colher os mais diversos instantâneos fotográficos do modo como as caras caídas e estilhaçadas se amontoavam em estranhas combinações, por vezes sinistras, por vezes comoventes. Este foi um trabalho intenso e provocador – como é costume verem-se poucos na cena artística regional. Não é de estranhar que os políticos primassem pela ausência, inclusive aqueles que pertencem a um ‘selecto’ círculo com poderes decisores sobre arte, museologia e, em termos gerais, cultura.

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Honra seja feita ao presidente da Câmara Municipal da Calheta, Carlos Teles, e ao vice-reitor da UMa, Sílvio Fernandes, que se dignaram estar presentes, constituindo a excepção ao desinteresse oficial.

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