Histórico

h_sampaio

Finalmente, 53 dias depois das eleições de 4 de Outubro último, o presidente da República decidiu dar posse a um governo com condições para exercer em plenitude as respectivas funções.
Fê-lo, como deixou acintosamente expresso, manifestamente contrariado e porque não lhe restava qualquer outra alternativa que não suscitasse uma mais que justificada indignação.
Se pudesse, é óbvio que o sr. Silva dissolveria o parlamento, e fá-lo-ia as vezes que fossem necessárias, até que a coligação liderada pelo seu partido conseguisse vencer as eleições para a Assembleia da República com maioria absoluta e, por conseguinte, governar a seu bel-prazer.
É que, como já se percebeu, o personagem de Boliqueime, que se vangloria de nunca se enganar e raramente ter dúvidas, e ao contrário do que foi arengando, não só não previu o cenário que dá a base de sustentação ao governo liderado pelo dr. António Costa, como tudo tentou para impedir que essa maioria parlamentar à esquerda pudesse culminar no XXI governo constitucional.
O ainda inquilino de Belém e a coligação que nos últimos 4 anos não teve pejo em colocar trabalhadores do sector privado contra funcionários públicos, jovens contra idosos, fomentar a emigração, gabar-se de ter ido além da troika, introduzindo uma violenta política de austeridade que pôs em causa os ganhos já obtidos em sectores como a saúde, a educação e a ciência, e que lançou na pobreza centenas de milhares de portugueses, ao mesmo tempo que os rotulava de “piegas” e os desafiava a sair de uma pretensa “zona de conforto”, estava longe de imaginar que, apesar de maioritária, a esquerda se pudesse entender num programa mínimo de governo.
Comportava-se como, aliás, evidenciou sobejamente ao longo dos tempos mais recentes, como se detivessem uma espécie de direito divino a governar a que acrescia a campanha, exaustivamente repetida na comunicação social e não só, de que não havia alternativa à cartilha austeritária posta em prática, não só em Portugal, como na generalidade dos demais países da União Europeia.
Com base neste pressuposto, a coligação “PAF” partia do princípio que ao PS não restava outra alternativa que não fosse servi-lhes de muleta, mesmo que tal pudesse representar a sua “ pasokização”.
Ignoraram, porém, o facto, por um lado, de que António Costa deixou sempre claro que não se identificava com a existência do conceito de partidos do designado “ arco da governação” e, por outro, de que não estava disponível para viabilizar a continuidade da prática governativa que a maioria dos portugueses que votaram nas eleições de 4 de Outubro p.p. rejeitaram nas urnas.
Naturalmente que a perspectiva de substituir a anterior coligação de direita por uma solução à esquerda se tornou mais viável a partir do momento em que, quer o PCP, quer o BE, fizeram saber que o PS só não formaria governo se não quisesse.
Uma tal assunção bastou para que, ao mesmo tempo que se acusava António Costa de “golpe de estado”, de “batota eleitoral” e de “usurpação de poder”, chovessem os julgamentos de carácter do líder do PS e se voltasse a agitar o papão do comunismo, à imagem do PREC de há 40 anos atrás. Na linha da frente deste recurso ao vale tudo destacou-se o site do Observador e os colunistas que por lá pululam com raízes marxistas-leninistas-maoístas que, pelos vistos, se mantém fiéis ao anticomunismo primário de outros tempos.
Simultaneamente abundaram as acusações de que uma tal solução governativa seria o descalabro. Rebentaria com as finanças públicas. Faria disparar o défice e a dívida, como se, quer um, quer outra, tivessem, entretanto, entrado nos eixos, como sói dizer-se. Pelo meio fizeram-se ainda apelos a que as agências de rating, os mercados reagissem para evitar que o país caísse em tão tenebrosas mãos.
Malgrado toda esta alusão apocalíptica a serenidade continuou a imperar. E, ao contrário da expectativa em que Belém, a coligação PAF e os seus arautos na comunicação e nas redes sociais apostavam, os partidos de esquerda têm vindo a dar sinais de que os seus entendimentos podem vir a fortalecer-se. A provar isso mesmo Jerónimo de Sousa já dá a entender que a aprovação do Orçamento Geral do Estado para 2016 estará garantida e anunciam-se reuniões semanais entre os partidos que suportam esta solução governativa. Ou seja, a violenta contestação desencadeada tem contribuído para cimentar laços entre as partes em presença.
Por isso, seja qual for o resultado de todo este processo, designadamente no que concerne à sua durabilidade, já se fez história. Verificou-se uma espécie de revolução no sistema político até agora vigente em Portugal.
Obviamente que teria sido preferível que tivesse havido um único acordo, partilhado por todos os partidos intervenientes, e que o governo integrasse as diferentes forças partidárias, mas os passos dados, sobretudo se permitirem a longevidade desta solução governativa, abrem caminho a que o dia 4 de Outubro possa marcar o início de uma nova era na governação em Portugal. Que introduza uma clara separação das águas e dê utilidade ao voto de todos os portugueses.
Seja como for, a tarefa do novo governo da República não se afigura nada fácil. Serão muitos e enormes os obstáculos que terá de enfrentar, colocados quer interna, quer externamente. A que acresce uma conjuntura europeia e mundial carregada de incertezas. O que irá obrigar a uma espécie de governação no fio da navalha.
Mas, se resultar, se os objectivos a que o governo se propõe forem atingidos, designadamente se for invertida a política de austeridade que tem vigorado e o país possa entrar num ciclo de crescimento sustentado, os portugueses, em particular os mais desprotegidos, ficarão claramente a ganhar. E com eles os partidos intervenientes. Para amargo de boca de quem tudo fará para que não dê certo. Sendo também certo de que se esta experiência falhar todos perderão.
Para bem do país, oxalá se possa fazer duplamente história.

• Texto escrito, por opção, de acordo com a antiga ortografia.