Viver a bordo de um navio de guerra

screenshot_2015-11-26-10-34-12.pngFotos: LR

A vida na Marinha de Guerra não é fácil. Além de ser uma tarefa com bastantes responsabilidades, a menor das quais não será, certamente, a de fiscalizar a nossa extensa zona marítima exclusiva, é uma vivência sujeita a poucos confortos, à obediência a muitas regras e a um certo enclausuramento em determinadas zonas do navio, onde há tarefas a executar. A recente viagem de Ireneu Barreto às ilhas Selvagens, acompanhado do presidente da Assembleia Legislativa da Madeira, Tranquada Gomes, da governante Susana Prada e de outras entidades, ofereceu aos jornalistas a possibilidade de constatar como decorre o quotidiano a bordo da fragata Bartolomeu Dias. Uma experiência interessante.

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O NRP Bartolomeu Dias, com o número de amura F333, é o navio que dá o nome à classe denominada a partir do famoso navegador português, o primeiro a dobrar o Cabo das Tormentas, mais tarde chamado da Boa Esperança. Foi integrado à Marinha Portuguesa em Janeiro de 2009. Até então, pertencia à Marinha Real Holandesa, e dava pelo nome de HrMs Van Nes, da classe Karel Doorman. Portugal comprou esta fragata conjuntamente com a RNLM Van Galen, que foi baptizada como NRP D. Francisco de Almeida, por 240 milhões de euros.

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Originalmente, este navio data de 1994 e participou, enquanto pertencia à Marinha Holandesa, na operação ‘Liberdade Duradoura’ (invasão do Afeganistão por uma coligação de países ocidentais liderada pelos Estados Unidos).

Actualmente navega com uma guarnição constituída por cerca de 20 oficiais, 40 sargentos e 98 praças. Tem também a possibilidade de transportar um helicóptero Super Lynx MK95, e o respectivo destacamento, constituído por 15 pessoas.

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Este navio de guerra, concebido originalmente para luta anti-submarina, pode operar em qualquer parte do mundo. Tem uma reduzida assinatura radar e um sistema de defesa aéreo avançado. Para além das missões bélicas, está preparado e treinado para operar muitas missões não combatentes, na esfera da fiscalização dos mares, por exemplo, usando equipas de abordagem, através das lanchas rápidas e botes que o próprio navio transporta ou por helicóptero. Pode, assim, operar com apoio de equipas de fuzileiros navais no combate ao narcotráfico, operações anti-pirataria ou vigilância costeira, ou mesmo de salvamento.

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Os fuzileiros são os grandes operacionais de bordo. São homens duros e treinados para o desempenho de tarefas perigosas e exigentes, do ponto de vista físico e psicológico. Estão habilitados a manejar diversos tipos de armas e veículos e é visível que se sentem como ‘peixe na água’ a manejar os seus botes rápidos na superfície do mar. “Homens de ferro em botes de borracha”, auto-intitulam-se. Se não há espaço para eles porque embarcaram em números maiores, facilmente se acomodam em camas de campanha no hangar.

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O navio ‘Bartolomeu Dias’ está equipado com vários radares e sistemas de guerra electrónica, tem dois lançadores para mísseis Harpoon anti-navio de longo alcance, um canhão Oto Melara de 76 mm, mísseis de curto alcance NATO Sea Sparrow para defesa anti-aérea, um sistema automático com elevado ritmo de fogo para defesa próxima anti-míssil, dois reparos duplos de tubos lança-torpedos para ataque a submarino e duas peças de pequeno calibre para dissuasão e repressão a navios e embarcações.

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O helicóptero Lynx concorre ainda para a luta anti-submarina, equipado com um sonar arriável de profundidade variável e torpedos MK46. Pode ainda ser usado em salvamento, transporte de passageiros e carga, inserção de equipas de operações especiais para abordagem a outros navios ou evacuação de feridos, além de compilação do panorama de superfície para ataques com mísseis de longo alcance.

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A bordo, a vivência é orientada por regras rígidas e por turnos exigentes que alternam o desempenho das funções necessárias com períodos de descanso, frequentemente não muito longos e que podem ser interrompidos em caso de necessidade. Quando no mar, os marinheiros, quer se trate de oficiais, sargentos ou praças, têm de estar quase sempre num estado de prontidão constante, e estão condicionados para obedecer às instruções que a todo o momento lhes podem ser transmitidas através dos altifalantes, convocando-os para o desempenho de determinadas funções ou a presença em determinados locais. São frequentemente feitos exercícios, para manter o grau de reacção rápida a circunstâncias perigosas como incêndios ou acidentes a bordo, situações inopinadas ou imprevistas, chamada aos postos de combate ou abandono do navio.

O tenente Ângelo Silva é um exemplo de jovem motivado pela vida militar
O tenente Ângelo Silva é um exemplo de jovem motivado pela vida militar

As instalações, inclusive dos oficiais, são espartanas, quer nas salas de convívio, quer nos camarotes, onde se dorme em beliches cuja privacidade se limita a uma cortina. Não há luxos a bordo e tudo é muito prático. O navio encontra-se compartimentado por inúmeras escotilhas e portas blindadas, para que, em caso de inundação, seja evitado o afundamento. São muitas as escadas que é preciso subir e descer, e sempre com cuidado, mesmo que com rapidez, pois ninguém está livre de acidentes.

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Ao princípio, a movimentação a bordo pode parecer algo labiríntica, mas a verdade é que rapidamente o sentido de orientação determina quais os percursos.

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Os acessos ao exterior são fortemente limitados, a partir do cair da noite, por motivos de segurança, e consequentemente a sensação de estar neste navio torna-se, desde essa ocasião e durante a noite, praticamente similar à de estar no interior de um submarino, só que muito maior… Não se vislumbra nada lá fora pelas escassas vigias, na maior parte dos casos seladas, e todo o ‘entretenimento’ decorre entre portas. As luzes são muito  reduzidas à noite: praticamente apenas as luzes vermelhas estão acesas e os painéis de instrumentos brilham no escuro. Particularmente na ponte de comando, onde tudo se mantém na maior obscuridade, exceptuando os écrans dos instrumentos de navegação. Numa noite clara, ainda se vislumbra algo; numa noite nublada, praticamente nada. Apesar de todos os instrumentos electrónicos, a atenção é permanente.

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Algo interessante é a significativa presença de militares do sexo feminino entre a tripulação. Elas estão ali, desde praças a sargentos e a oficiais, com as mais diversas funções. O médico de bordo nesta missão da Bartolomeu Dias na Madeira, por exemplo, era uma mulher. Longe vão os tempos das forças armadas exclusivamente masculinas.

A convivência com os restantes militares, segundo as próprias, parece processar-se de forma pacífica e sem espaço para preconceitos. Nesta Marinha profissional, todos estão ali porque querem e aprenderam a respeitar-se uns aos outros.

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General Marco Serronha, Comandante Operacional da Madeira, a bordo

Algo assinalável nestes jovens que servem a bordo da Bartolomeu Dias e que, presume-se, são um bom espelho do que se passa nas outras unidades navais, é a atitude responsável e compenetrada. Estão conscientes das suas responsabilidades, estão convictos da carreira que escolheram e apreciam o que fazem. São responsáveis e educados.

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O tenente Ângelo Silva é o oficial encarregue das relações públicas e cumpre bem o seu papel, mas sem fazer propaganda. Com 31 anos, confessa que quando terminou os estudos e decidiu que queria ser militar, candidatou-se a vários ramos das forças armadas, inclusive à GNR, e também a universidades. Quando se é tão jovem, assume, ainda se está à procura de um caminho e ninguém tem a certeza absoluta de qual quer realmente seguir. Depois de ter sido admitido na Escola Naval, gostou e, uma vez incorporado ao serviço, não mais se arrependeu da sua escolha. Gosta do que faz, é bem disposto e descontraído mas notoriamente um disciplinado militar. É um daqueles que mostra uma verdadeira apetência por essa profissão. Tal como nos disse uma jovem oficial do sexo feminino, quando interpelada sobre o motivo porque se alistou na Marinha: “Gosto de regras”. E está no lugar certo, não restam dúvidas.

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A Marinha Portuguesa permite a ajuda aos Vigilantes da Natureza nas ilhas Selvagens

O NRP Bartolomeu Dias é comandado pelo capitão-de-fragata Paulo Jorge Cavaleiro Ângelo. Nascido em 1967, tem um extenso currículo que inclui a especialização em Armas Submarinas, a presença em vários navios em diversas funções e a participação em numerosos exercícios e operações militares nacionais e internacionais, entre as quais missões na Guiné-Bissau e a operação ‘Allied Force’, em 1999, no âmbito da sua integração na STANAVFORLANT, durante o conflito no Kosovo.

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Foi subdirector e chefe de gabinete de Tecnologia Educativa nas Escolas de Armas Submarinas e de Informações de Combate. Em 2001, foi promovido a Capitão-tenente, e passou a director dessas escolas técnicas. Em 2003 foi nomeado chefe do Departamento de Formação de Operações, cargo que exerceu até Setembro de 2004.

Depois de múltiplas outras atribuições, várias das quais no quadro da NATO, assumiu em Julho de 2014 o comando da ‘Bartolomeu Dias’. É a ele que compete o comando desta nave e a tarefa de velar por todas as vidas a bordo. Não é pouca responsabilidade.

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O vice-almirante Pereira da Cunha, que chefia o Comando Naval, fotografado a bordo da ‘Bartolomeu Dias’