Gabriel Pita lança livro: “Quando a colaboração Igreja/ poder ultrapassa limites, um fica sempre a perder”

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Gabriel Pita na sessão de apresentação do seu livro, na Câmara Municipal do Funchal.

Gabriel Pita é um professor de história aposentado. Mas sempre ativo e fascinado pelo labirinto da história. Discreto e entusiasta da relação polémica entre o chamado trono e o altar, publicou esta semana o livro A Igreja Católica e o Nacionalismo do Estado Novo. Uma obra editada no âmbito “Aprender Madeira”, apresentada pelos Professores Eduardo Franco e Ana Cristina Trindade.

É um contributo pertinente nos tempos atuais. Da Igreja, Gabriel Pita destaca o princípio basilar do Amor que não se compagina com nacionalismos exacerbados ou autoritários. Por outro lado, deixa-nos, com a modéstia e parcimónia que lhe são características, um alerta: “Quando a colaboração entre o poder político e o poder religioso ultrapassa os limites do bom senso, há sempre um que fica a perder.”

Funchal Notícias – Como nasceu este livro?

gabriel 2Gabriel Pita – O livro reproduz, no essencial, uma dissertação de Mestrado defendida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em Dezembro de 1995, com vista à obtenção do grau de Mestre em História Contemporânea. Circunstâncias várias conduziram a que só agora fosse publicado, depois de três malogradas tentativas anteriores que, no entanto, foram proporcionando um aperfeiçoamento e actualização do estudo inicial. O Professor Doutor José Eduardo Franco, director do projecto do Dicionário Enciclopédico da Madeira, para o qual colaboro, o Dr. Maurício Marques da APCA (Agência de Promoção da Cultura Atlântica) e a editora Esfera do Caos chegaram a acordo, no sentido do patrocínio do livro e ele cá está.

FN – Qual é a abordagem central ou estruturante do livro?

gabriel livroO tema central deste estudo é o do relacionamento da Igreja Católica com as Ditaduras europeias, entre as duas guerras mundiais, e de modo particular com o Estado Novo, em Portugal, abrangendo os pontificados de Pio XI (1922-1939) e Pio XII (1939-1958), dois homens diferentes, actuando em circunstâncias diferentes.

O nacionalismo era então a bandeira arregimentadora, a trave mestra da estrutura ideológica destes regimes vulgarmente designados de fascistas, pelo primado cronológico do modelo italiano. A Igreja olhava com simpatia para estes regimes que aparentemente iam ao encontro dos propósitos do seu magistério social, na implementação do corporativismo, na eliminação da luta de classes e na construção duma unidade em volta dum fervoroso nacionalismo apoiado na tradição.

A Igreja apostava ainda na reconstrução duma respublica christiana medieval, condenando a liberdade religiosa, o ecumenismo e a separação entre a Igreja e o Estado; as Concordatas e Acordos assinados então entre os dois poderes, em diferentes nações, constituíam, na perspectiva católica, um mal menor, visando salvaguardar a acção da Igreja dentro e fora dos templos.

Mas o choque era inevitável: estávamos em presença de dois totalitarismos concorrentes, um querendo “politique d’abord”, lema da Action Française, que não logrou vencer na França, e outro querendo “religion d’abord”. A Igreja apresentava-se como “sociedade perfeita” em face da transitoriedade dos regimes políticos. E o nacionalismo das Ditaduras acabou por originar acções imperialistas, que iriam conduzir à 2.ª guerra mundial.

O catolicismo é, na sua génese, uma religião universal, baseada no amor, e não se compadecia com um nacionalismo egoísta, agressivo, xenófobo e racista. Conviver com o sucesso destes regimes, obter deles a liberdade de acção da Igreja mas defender a doutrina, esse foi o grande dilema de Pio XI e Pio XII. E no entanto, a voz católica nem sempre se expressa do mesmo modo, manifestando-se algumas clivagens entre a actuação do Papa, da Cúria, dos episcopados nacionais e de algum clero a nível individual.

Procurei apreender algumas dessas dissonâncias, sobretudo no que respeita a Portugal. E, por muito estranho que pareça, até 1940 a voz clerical mais crítica do Estado Novo, foi a do Cardeal Cerejeira. Após essa data, calou-se e pactuou, embora algumas vezes a contragosto.

FN – A quem se dirige este livro?

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Sala cheia para assistir ao lançamento da obra.

GP – Julgo que este livro poderá interessar a um público de mediana cultura, preocupado em compreender os problemas da sociedade actual e não apenas a especialistas de História Contemporânea. Embora sendo à partida um trabalho académico, procurei adaptar a linguagem, com este propósito. Mas penso que poderá interessar de modo especial a quem se debruça sobre esta problemática das relações entre o poder político e o poder religioso e procura entender o ressurgimento de movimentos neonazis na actualidade, sobretudo em momentos de crise económico-social e cultural.

Penso de modo particular nos políticos que encaram a sua actividade como um serviço à nação e que têm a consciência de que só conhecendo bem a sociedade poderão intervir nela, e ainda naqueles membros do clero que não se contentando em ser funcionários do culto, pretendem ser pastores do rebanho que lhes foi confiado, sendo importante, para isso, uma sólida e actualizada cultura religiosa e humana.

Se, com este modesto estudo, eu puder dar um contributo para isso, sentir-me-ei muito satisfeito.

FN – Qual a sua actualidade ou pertinência?

GP – A investigação histórica, de modo especial a que se debruça sobre a História Contemporânea, como é o caso, parte duma preocupação e análise de problemas do presente, que conduzem a uma busca das suas raízes, com vista a uma melhor compreensão da sociedade na qual o historiador se encontra inserido.

Em 1995, pouco tempo decorrido da queda do Muro de Berlim e do império soviético, a questão dos nacionalismos estava, de novo, na ordem do dia e surgiam aqui e acolá movimentos neonazis. Por outro lado, a primitiva formação que recebi e o entusiasmo que despertou em mim o estudo da I República e do Estado Novo contribuem para explicar esta incursão pela problemática das relações de poder entre a Igreja Católica e o Estado, entre o poder político e o poder religioso, questão esta tão actual em 2015, a nível internacional com as consequências decorrentes do fundamentalismo islâmico, e a nível nacional com o apoio especial que os Governos central e regional têm dado às escolas católicas e à construção de igrejas. Quando a colaboração entre o poder político e o poder religioso ultrapassa os limites do bom senso, há sempre um que fica a perder. Durante a Monarquia Constitucional e no Estado Novo, foi a Igreja Católica que ficou a perder, na minha opinião, e julgo que após 1974 também. Tal como o conflito dos dois poderes, durante a I República, iniciado pelo regime republicano, acabou por criar a este sérias dificuldades e propiciar à Igreja uma revitalização.