“Tenho assistido a uma enorme desumanização da Medicina”

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É um médico com ampla experiência no tratamento de cancro da mama. Actualmente, está retirado da função pública, mas esteve vinte anos no Instituto Português de Oncologia (IPO) e está bem ciente dos dramas que as mulheres passam com esta doença, que pode implicar mutilações que muitas vezes não são bem aceites e que ferem profundamente o ego feminino. O amor próprio sofre e, com ele, toda a saúde em termos gerais. Mesmo assim, conforme diz, a situação é hoje em dia muito melhor que no passado, com as possibilidades de reconstrução que entretanto se foram aperfeiçoando. No entanto, não deixa de constatar que, lamentavelmente, a par da evolução científica, tem-se verificado uma grande desumanização da Medicina e da relação entre o doente e o seu médico.

Fernando Fernandes estará no Funchal amanhã, para assistir ao concerto de música clássica dinamizado pela sua paciente Raquel Lombardi, com a preciosa ajuda de amigos, no hotel Four Views Baía, cuja receita reverte a favor do núcleo regional da Liga Portuguesa Contra o Cancro, e para fazer uma prelecção a pessoal clínico no Hospital Dr. Nélio Mendonça. O Funchal Notícias tomou a seu cargo a tarefa de entrevistá-lo, colocando-lhe questões sugeridas pela própria Raquel Lombardi – uma paciente que atravessa actualmente tratamentos de quimioterapia e, portanto, está consciente do que as pessoas afectadas mais desejam esclarecer sobre este tema – e outras perguntas de nossa própria lavra. Objectivo: falar sem rodeios de uma doença que nos pode afectar a todos (inclusive os homens, embora em muito menor percentagem) e obter uma opinião sustentada na experiência, sobre o melhor caminho a seguir, o que pensar e de que forma agir, quando este ‘convidado nada desejável’ nos bate à porta.

Funchal Notícias  – Poderia falar um pouco sobre o cancro da mama nas mulheres e nos homens e a percentagem dos casos de sucesso no seu tratamento? 

Dr. Fernando Fernandes – O cancro da mama é o tumor mais frequente na mulher, estimando-se que uma em cada oito mulheres terá um cancro da mama no decurso da sua vida. O sucesso do tratamento depende, em primeiro lugar, de se tratar dum tumor não-invasivo (in situ), ou dum cancro invasivo, e, neste caso, do tipo do tumor, grau de diferenciação, estádio evolutivo, e dos fatores de prognóstico. É portanto impossível dizer genericamente qual o sucesso, quando estão em causa tantos fatores. Digamos que um tumor não-invasivo se cura. Os tumores invasivos em estádio muito inicial, de baixo grau de malignidade e com fatores de prognóstico favoráveis podem ser assumidos como curados, dado que a sobrevida expectável será quase total, embora, em Oncologia, um tumor invasivo é uma doença sistémica. O homem tem uma baixa incidência de cancro da mama (1 % das mulheres), mas tem pior prognóstico, devido muitas vezes a um diagnóstico tardio, mas também a fatores de prognóstico mais desfavoráveis

FN – Quando uma pessoa descobre através de uma mamografia ou outro método que tem um tumor maligno, que exames deve fazer para que um médico chegue a uma decisão terapêutica abalizada para esse caso? 

FF – Perante uma mamografia e/ou ecografia mamária, temos uma imagem suspeita de tumor maligno. É preciso, antes de mais, fazer uma biópsia para, não só confirmar a suspeita, mas também obter informação quanto ao tipo de tumor e quanto àquilo a que poderemos chamar “agressividade” tumoral, isto é, o grau de malignidade e as características dos fatores de prognóstico. Depois, se possível, uma ressonância magnética nuclear, a qual, além de confirmar a expressão da malignidade, permite excluir outros focos de tumor e visualizar os gânglios linfáticos regionais (axila e mamária interna) e avaliar se estarão atingidos ou não pela neoplasia. Finalmente, uma vez confirmado o diagnóstico, em regra procede-se ao estadiamento, executando alguns exames que têm a intenção de excluir a presença de metástases em outros órgãos (pulmões, figado, e abdómen, e ossos)

FN – Que tipo de biópsias existem? Que aspectos importantes a considerar numa biópsia para uma decisao terapêutica? 

FF – Embora existam vários tipos de biópsias cirúrgicas, estas só muitíssimo raramente são necessárias no cancro da mama. Antigamente praticava-se a biópsia por agulha fina, mas foi praticamente abandonada, por colher apenas células, ser pouco fiável, e não dar outra informação que não o diagnóstico do tipo do tumor. Hoje em dia usa-se a biópsia por trocar, chamada também microbiópsia, a qual recolhe fragmentos de tecido tumoral, e permite saber, além do diagnósto do tipo de tumor, o grau de diferenciação, e os fatores de prognóstico. É baseado nas imagens da mamografia e da RMN, do estadiamento, e nestes dados obtidos através da biópsia, que são fundamentais, que o oncologista, médico ou cirúrgico, estabelece um plano terapêutico.

FN – Em que casos se opta primeiro pela cirurgia? Em que casos são extraídos os gânglios? Como saber se estão afectados? 

FF – Em Oncologia é difícil estabelecer regras fixas, e cada caso tem de ser avaliado individualmente, e discutido em grupo, estando presentes o oncologista médico, o oncologista cirúrgico, o radioterapeuta, etc. Podemos dizer que são passíveis de cirurgia primária os tumores em estádios iniciais, pequenos, e com baixa agressividade, isto é, com fatores de prognóstico favoráveis, obviamente com estadiamento negativo, isto é, sem metástases. Os gânglios extraem-se nos casos atrás referidos, se são muito suspeitos clínica e imagiològicamente, de preferência com biópsia ganglionar positiva. Hoje em dia, quando a suspeita não é muito franca, usa-se a pesquisa e excisão do gânglio sentinela, uma técnica relativamente recente, que permite retirar o primeiro gânglio duma possível drenagem do tumor. Assim, se negativo, não se excisam os restantes gânglios, evitando a possível morbilidade dum esvaziamento axilar.

FN – Em que casos se opta pela quimioterapia antes da cirurgia? Não é um tratamento virtualmente venenoso para o corpo humano? 

FF – A quimioterapia como primeiro tratamento sempre foi usada nos tumores em estádios avançados, isto é, tumores grandes, ou aderentes à pele ou à parede, ou quando existiam metástases a distância. Hoje em dia, com o advento da imunohistoquímica e da biologia molecular, identificam-se alguns sub-tipos de cancro da mama cujo potencial de malignidade é tão elevado que podem beneficiar com a quimioterapia primária, tendo em vista a potencial micrometastização. A quimioterapia é uma arma poderosa, necessária, mas para ser usada criteriosamente, pois é uma terapêutica “cega”, isto é ataca todos os órgãos do organismo, e tem índices de toxicidade por vezes elevados.

FN – A radioterapia é uma opção em que casos? 

FF – A radioterapia é usada como tratamento complementar após a cirurgia conservadora, isto é, quando se pratica uma mastectomia parcial ou tumorectomia, por segurança, para “esterilizar” celularmente a mama restante, evitando a recidiva local, e aumentando a sobrevida. Pode ser necessária em casos de mastectomias com linfoinvasão dos retalhos, em recidivas locais, e nos carcinomas avançados, particularmente se ulcerados e infetados, atualmente uma raridade.

FN – Em que consiste a radioterapia? 

FF – A radioterapia consiste em aplicar sobre a mama restante, ou a parede torácica, ou a axila, uma dose fracionada de fotões (em regra 50 Gy). Habitualmente são aparelhos de megavoltagem, que emitem esses fotões de 4 a 6 Mv. Por vezes junta-se um boost do leito tumoral com eletrões.

FN – A quimioterapia é igual para todos os tipos de cancro da mama? Ou mesmo dentro destes tumores sao utilizadas diferentes quimioterapias? 

FF – Existem vários esquemas de quimioterapia, utilizados na prática clínica, uma vez estabelecida a sua eficácia em ensaios já efetuados. O esquema e dosagem dependem do tipo de tumor, estadio evolutivo, e da dita “agressividade” tumoral. Depende também da constituição do doente, peso, massa corporal. A quimioterapia deve ser ajustada a cada doente, caso a caso.

FN – O doente oncológico precisa de ter confiança no seu médico oncologista. Poderia comentar esta afirmação? Até que ponto essa confiança, e a esperança dela nascente, podem contribuir para a cura? 

FF – A confiança tem de existir desde o início, e é fundamental, para que o doente sinta que alguém o vai tratar pensando nele como pessoa, cuidando dele no sentido total do termo. Isso obriga a ser aberto, franco, a dizer a verdade, a criar esperança. Não é fácil, mas é esse o caminho. Se contribui para a cura? Cientìficamente nada se pode provar, mas… pensando ao invés, será que a falta de confiança, o desespero, a depressão, não podem comprometer a imunidade do doente? O contrário não poderá ser verdadeiro?

FN – Pode efectivamente falar-se de ‘cura’ em casos de cancro? Ou ter-se-á de dizer toda a vida que os pacientes apenas estão “em remissão”, havendo o risco de voltar o cancro a qualquer momento?

FF – Como já atrás disse, há casos em que se pode afirmar a cura, os tumores não-invasivos. Os tumores precoces, muito iniciais, de bom prognóstico, podem sugerir a cura, e o intervalo livre de doença ser para a vida. Mas, efetivamente, a possibilidade de recidiva é teoricamente sempre possível.

FN – Que mensagem deixaria para as pessoas que estão atravessar este problema? 

FF – Desde que, há já algumas décadas, enveredei por esta carreira, tenho assistido a uma tremenda evolução na prevenção, no diagnóstico e na terapêutica desta doença. Hoje em dia, as pessoas recorrem ao médico mais cedo, e são tratadas com armas mais eficazes. E, no futuro, talvez não muito distante, prevêm-se grandes avanços no tratamento. A minha mensagem é de esperança, e confiança no futuro. Ser feliz, cada dia e cada momento.

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FN – Todos sabemos do que o cancro é capaz. Não vale a pena dourar a pílula. Mas também, nem sempre é uma sentença de morte. Foram feitos muitos progressos no seu tratamento, embora tenha sido o grande assassino do séc. XX, e continue a ser o do séc. XXI. O impacto psicológico e sociológico é tremendo. Como pode um paciente lidar com um diagnóstico maligno da melhor forma possível? 

FF – Com confiança e esperança, rodeado pelo apoio dos que o amam, sendo solidário com os outros, criando objetivos, e lutando por eles.

FN – Os aspectos psicossomáticos são importantes… Será admissível, do seu ponto de vista, a união entre medicina ocidental convencional e algumas medicinas alternativas, e podem daí ser extraídos alguns benefícios? 

FF – Sim, seguramente. As medicinas alternativas consistentes, provadas, como a acupunctura, a naturopatia, têm o seu lugar, pela possível eficácia, e pela confiança e esperança que podem despertar no doente.

FN – A sua especialidade dentro da cirurgia geral é a senologia… Qual o impacto da mutilação da mastectomia na psicologia da mulher?

FF – A Senologia em Portugal não é uma especialidade, por razões que não vêm ao caso! É senologista, médico ou cirúrgico, aquele que se dedica às doenças da mama em geral. Quanto ao impacto da mastectomia, e estamos a falar da mastectomia radical, hoje em dia, com a possibilidade de reconstrução imediata com prótese expansora, o impacto é menor. Mas, anteriormente, era muito grande. Uma mulher aceitava bem a mutilação ginecológica duma histerectomia, e muito mal uma mastectomia, por afetar a sua imagem externa de mulher.

FN – O cancro parece depender de factores ambientais e relativos ao estilo de vida – alimentação, tabagismo, alcoolismo, etc. – mas também a uma predisposição genética. Como é ser médico, e tratar os doentes de um mal que, no fundo, pode afectar-nos a nós próprios quando menos esperamos? Os médicos também têm medo? 

FF – Todos temos medo! E ser médico é ser pessoa acima de tudo. No caso do médico, pensar num cancro é muito assustador, porque conhecemos tudo sobre a doença, com todo o cortejo de sintomas, complicações, evolução e desfecho final.

FN – Vozes como a de João Lobo Antunes, entre outras, clamam há anos por um maior humanismo e empatia com o doente na medicina. Temos hoje em dia médicos friamente competentes do ponto de vista científico, mas também suficientemente humanos para sentirem empatia com os doentes do ponto de vista emocional, em Portugal? Ou por vezes as coisas são comunicadas muito fria e impiedosamente? 

FF – Como eu costumo dizer, parafraseando um colega e amigo meu, eu já sou, pela minha idade, um geronte! Como tal, tenho assistido a uma enorme desumanização da Medicina. Por razões economicistas e políticas, o médico foi forçado a burocratizar-se, a funcionalizar-se, a estar dependente de instituições que o obrigam a produzir actos, a ter rentabilidade, ter objetivos, atitudes que colidem frequentemente com o que os doentes precisam. Talvez os médicos tenham mudado por isso. E tornaram-se efetivamente na sua maioria frios e impessoais.

FN – Que papel atribui ao pensamento positivo e a uma atitude construtiva e de esperança por parte do paciente? 

FF – Viver é um acto de coragem, de esperança no futuro, de busca de felicidade. A vida é finita. Um doente que tem essa atitude está a negar à sua doença o direito de o derrotar, está a demonstrar que a adversidade não pode vencê-lo, a dar um exemplo de tenacidade.

FN – Alguma vez se sentiu ‘derrotado’ por este inimigo de respeito? Frustrado com a lentidão dos avanços em medicina e em farmacêutica? 

FF – Sim, algumas vezes. Guardo alguma tristes recordações. Nem sempre saímos vitoriosos desta luta!

FN – Virá ao Funchal, creio, para marcar presença no concerto solidário organizado por Raquel Lombardi e amigos, e também para dar uma palestra no Hospital do Funchal, para pessoal clínico. Qual a sua opinião sobre o nível actual dos tratamentos às doenças cancerígenas na Madeira? Tem conhecimento da situação? 

FF – Duas coisas. A primeira expressar o meu carinho pela Raquel Lombardi, e dar testemunho da força interior que ela possui. e que a leva a ter esta atitude solidária e empenhada. Bem haja, em nome dos doentes, dos médicos que os tratam, e da sociedade, que tanto necessita de pessoas assim. A segunda dizer que tenho o privilégio de ser amigo de muitos dos médicos da Madeira, entre eles o Dr. Joaquim Vieira, que dedicou toda a sua vida às doenças da mama, à Senologia, com empenho e dedicação. Hoje em dia os conhecimentos científicos estão acessíveis a todos, e a Madeira tem excelentes profissionais, perfeitamente à altura das necessidades da população. É esta a minha convicção, baseada no conhecimento que deles tenho.

CURRíCULO DO MÉDICO FERNANDO FERNANDES:

Nascido em Lisboa, na freguesia da Lapa.

Concluiu o curso de Medicina no ano de 1973, e a Especialidade de Cirurgia Geral no ano de 1980.

Desempenhou funções de Assistente Hospitalar no Hospital de Santa Maria e no Hospital Pulido Valente, e posteriormente no Instituto Português de Oncologia, primeiro como Assistente Hospitalar, e posteriormente como Assistente Graduado (Consultor)

No I.P.O., praticou durante muitos anos toda a Cirurgia Oncológica, desde a cirurgia dos tumores do aparelho digestivo ou ginecológico à cirurgia dos tumores da pele e das partes moles.

Sendo uma instituição especificamente dedicada à patologia oncológica, a multidisciplinaridade era uma constante no exercício médico diário, sendo a Cirurgia um dos vetores duma terapêutica completa e integrada.

Assim, indiretamente, era chamado a participar na discussão dos doentes e planeamento terapêutico, tomando contacto com a Oncologia como um todo, nas suas vertentes cirúrgica, médica e radioterapêutica.

Era este aspeto o que diferenciava o I.P.O. das outras instituições hospitalares, as quais, durante muitos anos, tratavam a doença oncológica de forma fragmentada, e sem articulação entre as Especialidades intervenientes.

Com a morte do Dr. Gentil Martins, seu Diretor e mentor cirúrgico, houve uma reestruturação do serviço onde trabalhava, com a criação duma Unidade de Mama e Tumores das Partes Moles, tendo passado, a partir desse momento, a dedicar-se quase exclusivamente à área da Senologia (Doenças da Mama)

Teve sempre uma posição destacada e interventiva nessa área, vindo a fazer parte dos Órgãos Sociais da Sociedade Portuguesa de Senologia, e participado na maioria das Reuniões de Consenso Nacional, realizadas pela referida Sociedade

Participou também ativamente, muitas vezes como palestrante, em múltiplas Reuniões Científicas, em Portugal e no estrangeiro.

Apesar de ter abandonado a função pública, aposentando-se do Instituto Português de Oncologia, onde trabalhou durante mais de vinte anos, mantém-se em plena atividade clínica, dedicado quase a 100% à prática da Senologia

Pratica essa atividade em várias Clínicas e Hospitais, e no seu consultório privado, sito em Lisboa, Av. Marques de Tomar 104-1ºdireito-telefone 217986781