Dia da Criança: “Aprendi a ser um adulto num corpo de 9 anos”

 

Fabíola de Sousa

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Foto: Fabíola de Sousa

Nesta segunda-feira em que se assinala mais um dia Mundial da Criança o Funchal Notícias esteve em Câmara de Lobos, no concelho da Madeira onde o número de nascimento continua a ser o mais elevado, e falou com três crianças, com idades compreendidas entre os 8 e os 10 anos, sobre os seus sonhos, a sua vida diária a forma como gerem o dinheiro e o que pensam da crise e do desemprego.

Algumas respostas foram surpreendentes e fazem reflectir sobre a maturidade e capacidade de sacrifício que crianças com estas idades não deviam ter, e problemas com os quais não se deviam preocupar.

É o caso de João Pedro (nome fictício) quem num corpo de 9 anos tem a maturidade de 20 e aprendeu da forma mais difícil a lidar com o desemprego dos pais.

Quando lhe perguntamos quais são os teus sonhos respondeu, prontamente, que quer ser “primeiro-ministro para mudar tudo neste país”, nomeadamente acabar com o desemprego. “Sei que é uma utopia mas algo deve ser feito porque tudo corre mal neste ilha e neste país e se eu pudesse mudava tudo isso”, declarou.

Para que tem apenas 9 anos celebrar o Dia da Criança devia ser motivo de alegria mas João Pedro não tem ilusões, “irei à escola e será um dia como todos os que tenho vivido no último ano. Não tenho um brinquedo há mais de um ano mas isso não me impede de ser feliz, será um dia normal porque aprendi a ser um adulto num corpo de 9 anos”, revela.

É com a voz trémula e com uma maturidade que impressiona qualquer pessoa que confessa, “os meus mais estão os dois desempregados e tenho plena noção das dificuldades que a minha família está a passar no último ano. Sei que tenho de fazer sacrifícios que eu e os meus irmãos, mais pequenos, não temos o que a maior parte das crianças da nossa idade têm porque os nossos pais não nos podem dar”.

João Pedro revela que o desemprego dos pais mudou por completo tudo na sua vida, contudo, salienta que os seus pais sabem gerir o pouco dinheiro que têm como ninguém e que até agora nunca faltou comida na mesa.

“Não temos muitas coisas que antes tínhamos porque eles podiam dar porque tinham trabalho. Mas aprendi a lidar com o sacrifício e a aceitar que com pouco se pode fazer muito, e o mais importante é não faltar a comida”, confessa com uma lágrima no canto do olho, acrescentando que muitas vezes prefere não jantar para dar aos irmãos.

As despesas da casa são asseguradas pelos subsídios de desemprego do pais mas não sobra dinheiro para quase nada. “Não sei como é que eles conseguem fazer uma ginástica financeira tão grande, mas no fim sempre chega para não dever nada a ninguém. Neste tempo aprendi a dar mais valor ao que sempre tive e que muitas vezes não ligava e apercebi-me que não se pode desperdiçar nada”.

Este menino de 9 anos acredita que esta é só uma fase difícil que vai passar e salienta que os seus pais são “os seus heróis”.

Sobre o seu dia a dia, João Pedro refere que o seu único divertimento é jogar à bola no recreio e quando não está na escola limita-se a ajudar os pais a cuidar dos irmãos e a fazer alguns “biscates” para trazer mais uns “tostões para casa”.

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Foto: Fabíola de Sousa

Guarda o dinheiro no mealheiro porque um dia pode faltar

Felizmente, a história de Margarida (nome fictício) é bem diferente. Esta menina de 10 anos tem a vida que uma criança da sua idade deve ter. Tímida mas muito rápida nas respostas que o FN lhe fez, Margarida assume que não sabe o que é a crise, que houve falar muito nisso mas que em casa tem tudo. Fica é triste ao ouvir falar do desemprego. “Tenho amigos na escola que têm os pais nessa situação e eu peço aos meus pais para ajudar, é só isso que posso fazer”, diz.

Questionada sobre como será o seu Dia da Criança e quais são os seus sonhos, Margarida refere que quer ser médica para ajudar todas “as pessoas”. Sobre o seu dia-a-dia diz que é muito feliz e que os pais lhe dão tudo o que quer. “Pedi aos pais um tablet para o dia da criança e sei que vou ter porque me portei bem”, responde com um ar envergonhado.

Margarida refere ainda que leva muitos brinquedos para a escola para partilhar com os amigos que não têm. “Peço aos meus pais para levar os brinquedos que já não quero. É uma forma de ajudar”, diz. Falámos também com a menina sobre a forma como gere o dinheiro que os pais lhe dão e a resposta foi esta: “Guardo quase tudo no meu mealheiro porque os meus papás dão-me tudo e não preciso de gastar muito. É que tenho medo que um dia ele possa faltar e eu assim vou poder ajudar”, conclui sem querer falar mais.

“Sei que os meus pais não me podem dar tudo”

A conversa com Rafael (nome fictício) de 8 anos foi diferente das outras: tentámos interpretar as palavras que os seus oito anos ainda revelam na construção e articulação das frases mas Rafael também fala das dificuldades financeiras, do gerir o dinheiro e do desemprego.

“Tenho muitos manos, quatro, o meu pai está desempregado, a minha mãe trabalha. Às vezes faltam coisas e os meus avós e tios ajudam. Os meus irmãos maiores também ajudam porque já trabalham”, declara com a nossa ajuda e com algum receio de falar.

Ao perguntarmos como será o seu Dia da Criança Rafael diz que a escola está a preparar uma festa, mas sabe que em casa não haverá prenda porque “os meus pais não me podem dar tudo”.

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Foto: Fabíola de Sousa

Rafael mostra alguma preocupação com o desemprego do pai, contudo pela nossa conversa percebe-se que há muito apoio dos familiares e que o menino tem consciência das dificuldades, mas como qualquer criança da sua idade diverte-se com o que tem e brinca na rua com os amigos “à bola e aos mergulhos para ver quem dá o melhor”. Apesar das contingências, Rafael transmite um sorriso feliz. Quando se fala nos sonhos diz que quer ser polícia ou talvez bombeiro porque quer ajudar os outros a ter a vida melhor.

Para finalizar a nossa conversa, perguntámos-lhe se os pais lhe dão dinheiro para alguma necessidade na escola e ele respondeu “às vezes 50 cêntimos mas não me preocupo porque estou habituado a viver com pouco. Somos muitos e tem de dar para todos”, rematou.

Rafael é pequeno no tamanho e na idade mas começa a ter consciência da importância de gerir bem o dinheiro, de que não pode ter todos os brinquedos que têm os amigos e mais do que isso, parece lidar bem com a situação porque nos últimos três anos a situação financeira da família tem sido muito difícil. Contudo, ainda há um sorriso no rosto deste menino que com um ar muito envergonhado deixou soltar estas palavras, “o mais importante é a união da família”.

De referir que esta reportagem foi autorizada pelos pais que pediram anonimato dos filhos, assim como não foram captadas imagens destas nem de outras crianças por respeito ao direito de privacidade das famílias e das crianças.