Herberto, o eremita… era na realidade muito acessível

Herberto Helder não gostava de estar na ribalta. Mas era um homem amável e acessível
Herberto Helder não gostava de estar na ribalta. Mas era um homem amável e acessível

A residir actualmente na Madeira, após muitos anos de ausência, o poeta madeirense José Agostinho Baptista conviveu de perto com Herberto Helder, outro vate nosso conterrâneo que viveu exilado em Lisboa durante décadas, e cuja notícia do falecimento veio hoje surpreender muitos admiradores. Pedimos-lhe, por isso, que lembrasse as horas de convívio passadas com Herberto, até porque ambos partilharam durante muitos anos a mesma editora – a Assírio & Alvim.

“Esse contacto aconteceu muitas vezes, ao longo de anos… Não foi um contacto muito íntimo, obviamente, porque eu, por uma questão de timidez, perante o mestre, inibia-me demasiado. Ficava sempre a ouvir e pouco ou nada falava. E ficava a ouvir porque ele era uma voz da sabedoria, que eu tinha o prazer de escutar. Sobretudo, era uma voz da literatura. Não tanto da vida, mas da literatura, porque penso que a primeira pele do Herberto era a própria escrita, a própria literatura, e a poesia em particular. E ele vivia da literatura e para a literatura. Às vezes, não sei bem o que era mais real – se era a sua ficção, se era a sua figura. Era duma entrega absoluta e definitiva à sua escrita e à escrita do mundo”.

Muita gente tem de Herberto Helder a ideia de um poeta algo eremita, distanciado de tudo e de todos, mas não era bem assim. Embora preferisse manter-se arredado de eventos públicos e do calor dos holofotes, Herberto era um senhor simpático e muito acessível. O jornalista que escreve o presente artigo pode afirmá-lo, porque teve o privilégio de passar uma tarde inteira num café em frente à livraria da Assírio & Alvim, em Lisboa, à conversa com Herberto Helder. Embora recusasse dar uma entrevista, o poeta conversou longamente connosco sobre literatura e outros temas, inclusive relembrando inúmeras memórias da Madeira, sem qualquer azedume pela terra à qual há anos não retornava. No final, até nos autografou a sua ‘Poesia Toda’ – um gesto raro.

José Agostinho Baptista corrobora a ideia de que a inacessibilidade não correspondia à verdade.

“Isso faz parte dos vários mitos que se foram construindo à volta da figura do Herberto. A maior parte desses mitos, como quase sempre acontece na vida, não correspondiam à realidade. E esse da inacessibilidade, do silêncio, da dificuldade de relação com os outros, não é verdade. O Herberto até era uma pessoa que falava muito, se tivesse interlocutor. E na Assírio & Alvim, em especial na livraria, onde eu passava às vezes duas ou três horas, durante a tarde, a conversar com os funcionários, ele era uma pessoa que contrariava em absoluto o mito do isolamento e do hermetismo. A verdadeira história do Herberto Helder ainda está por fazer, e não sei como será feita… apenas tenho estas achegas que posso dar, do que foi esta relação”, recorda.

De qualquer modo, o poeta madeirense manteve-se sempre arredado do que hoje se chama o lado mais mediático das coisas.

“Penso que o Herberto cultivava uma relação diferente com a crítica, com o mundo, com o universo dos livros, que não passava tanto por essa exposição, mas por uma relação mais contida e mais de escrita, como se cultivava antigamente, escrita de mão, escrita de cartas para isto e para aquilo, para o que fosse necessário. E assim se construiu essa carreira cheia de mistérios, alguns dos quais, provavelmente, nem mistérios serão”.

Para José Agostinho Baptista, a escrita de Herberto Helder é notável por todas as razões. “É notável pela extrema qualidade que ao longo de toda a obra se manteve, nuns casos de forma mais visível ou mais extrema, ainda, mais absoluta – mas isso é uma fatalidade de todo o ser humano, às vezes estamos mais perto da perfeição, outras nem tanto, e no caso do Herberto, ele andou sempre muito perto dela. É o maior elogio que lhe posso fazer, essa grandeza literária, essa grandeza poética. Ele tem um lugar à parte na literatura portuguesa”.

O nosso entrevistado admite, inclusive, que Herberto Helder influenciou a sua poesia. “A minha criação acabou por ser diferente. Eu era um leitor ávido do Herberto, em variadíssimas coisas. Algumas tocaram-me muito e influenciaram-me, mas eu penso que, olhando para trás de uma forma equilibrada e lúcida, eu depois naturalmente fui-me afastando dessas influências. Penso que construí um caminho e a minha poesia não se tornou tão próxima da do Herberto… São diferentes, embora possam ter pontos de contacto, que se foram esbatendo com o tempo”.