Aos 72 anos, conduzindo um carro de praça em Santa Cruz

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Hoje, Dia da Mulher, o Funchal Notícias empreendeu uma viagem à Madeira real, aquela que vive sem privilégios nem mordomias acessíveis apenas a alguns. Foi em Santa Cruz que fomos encontrar uma trabalhadora aguerrida, que disputa a sua actividade profissional ‘taco a taco’ com os homens, num terreno que é maioritariamente deles – mas jogando nos seus próprios termos.

Aos 72 anos, Maria dos Santos Vieira Coelho trabalha ao volante, como condutora de um ‘carro de praça’, um veículo de transporte de mercadorias e pessoas – na prática, uma pequena furgoneta. Conhece as estradas e caminhos do concelho, e não se assusta com as subidas e descidas que encontra pela frente. Nem com os olhares de poucos amigos que alguns taxistas lhe dirigem, por considerarem que lhes faz concorrência, ou que as mulheres deviam estar em casa, ou que Maria Coelho já não tem idade para estar nesta labuta e devia estar sentada em casa a fazer tricot ou crochet ou a cozinhar.

Esta mulher-motorista não se deixa prender por clichés. Com seriedade, diz-nos que nem tudo o que os homens fazem uma mulher deve fazer. Mas percebemos que está a falar de outras coisas, não da vida profissional. Aí, não dá o braço a torcer. Para ela, os direitos têm de ser iguais para ambos os sexos no acesso ao trabalho. E não perdeu tempo a reclamá-los, quando foi preciso.

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Durante anos, labutou na agricultura, vivendo dos produtos do campo. “Tinha carro e tinha carta, mas não estava ‘na praça’, conta. “Já fiz um pouco de tudo, na minha vida. Plantei macela, plantei agrião, fui vender, fiz barretes, fiz tanta coisa”. Até que a saúde a obrigou a afastar-se de trabalhos que exigissem maior esforço físico.

“Anos atrás tirei um rim, e já não podia ir para a fazenda trabalhar. Houve então alguém que me informou que eu podia ir fazer isto, para ganhar alguma coisa, para a gente viver”. As coisas não eram já fáceis, então. “Então, resolvi seguir o conselho dessa pessoa, e fui ao Serviço de Viação pedir uma licença para trabalhar”. Corria então o ano de 1999. Desde então, tem-se mantido sempre em actividade. Pode parar um dia ou dois, mas está sempre disponível. “Poucochinho, porque isto não aparece muitos serviços… Tem dias que a gente não faz nada, ou faz só um servicinho”…

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Como descreve a D. Maria Coelho o seu dia-a-dia? “As pessoas telefonam-me, chamam-me, eu vou, elas compram coisas no supermercado, ou seja onde for que têm as cargas, e depois eu levo as cargas e também as pessoas aonde elas precisam de ir”, explica.

A maior parte das cargas tem a ver com a agricultora. São sacos de ração, de milho em grão, de adubo… “São coisinhas… Às vezes também há alguma coisa da fazenda que é preciso acartar… É assim. Quanto aos preços, sabe… eu não quero ganhar muito, eu trabalho para viver, não é para ficar rica, nesta idade”.

O marido morreu-lhe e já não pode contar com a sua companhia. Conta-nos uma história triste mas de forma seca e sem lamentações. A 19 de Julho de 2012 houve um sério incêndio em Santa Cruz, e o seu companheiro morreu no último dia desse mesmo ano, às 10 horas menos dez minutos da noite. “Ele acabou por durar poucos meses, lamenta”. Os danos causados na sua propriedade deixaram o marido profundamente deprimido e afectado pela catástrofe. “Perdemos animais… Na garagem a gente tinha tanta coisa, que ardeu tudo, a casa sofreu danos… E só de árvores de fruto, foram 177 que se foram em fumo”. A parede que sustentava o poio que tinha diante da casa também ruiu, com o temporal do 20 de Fevereiro de 2010, mas não conseguiu os apoios que almejava para voltar a erigi-la. Algo que lhe parecia indispensável, pois tinha medo de ser roubada. E, na realidade, já o foi, admite.

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Hoje a vida é complicada, admite. Tem dificuldades financeiras. “Se não as tivesse, não viria trabalhar com esta idade. Mas tenho de pagar a homens para limpar a fazenda, para podar as árvores, porque eu ali já não posso trabalhar. E porque sempre tentei continuar as coisas que já tinha do tempo do meu marido”. Não contou com grandes apoios para isso. Diz que a Junta ajudou com um pouco de material, mas queixa-se de que, nos apoios oficiais do Governo Regional, os apoios oficiais aos que sofreram danos decorrentes dos incêndios ou do temporal nem sempre foram distribuídos equitativamente. Para ela, que tinha recentemente enviuvado, não houve muita compreensão. Por isso pediu ajuda financeira a outras pessoas, e foi trabalhando e pagando.

Tem consciência de que não há muitas mulheres com a sua idade em plena actividade profissional. Muito menos num ramo como o seu. “Com esta idade, elas não se obrigam a isto. Eu faço-o para poder manter a fazenda como deve ser. Eu tenho uns pedacinhos de terra que custaram a meu marido ter de trabalhar e pedir dinheiro para comprar. Antigamente, a gente pedia dinheiro era para comprar terra. Não era para passear. Não tenho muitos pedaços de terra, mas o pouco que tem, eu não posso trabalhá-la. Por isso, tenho de pagar a outros para o fazerem. E assim faço este trabalho”.

As pessoas do concelho estranham ver uma mulher de 72 anos a conduzir uma furgoneta por caminhos e estradas íngremes? “Aceitam bem, não estranham nada, porque já me conhecem há muitos anos. Acho que nunca estranharam. Só os taxistas aqui em Santa Cruz é que são muito invejosos. Eles têm o aeroporto, aqui, e a minha furgoneta não é nada em relação a um táxi, que já vai a contar… Mas eu com esta idade, e com estes anos a trabalhar, e eles ainda pegam sempre comigo. Alguns, não todos”.

Queixa-se de que há profissionais de táxi que passam o tempo a “gozar de quem é velho, e a ‘mandar bocas’. Alguns são mal-educados. Do aeroporto e de Santa Cruz. Mas eu não ligo a bocas. Às vezes, dizem-me: vai para casa, já não tens idade de andar a trabalhar, e estás furtando os nossos clientes… Às vezes eu chateava-me, e respondia alguma coisa. Mas acabei por deixar de o fazer, porque eles não merecem que lhes dê resposta. E olhe que alguns têm idade de ser meus filhos. Têm dinheiro, são mais ricos, pronto. Gostam de fazer pouco de quem é velho”, denuncia.

“Eles queixam-se de concorrência, mas acho que as pessoas são livres de ir no carro que quiserem. Se eu preciso de ir numa furgoneta, ninguém vai me obrigar a ir num táxi!”, reclama a Dona Maria. “E eu também não vou chamar ninguém para ir no meu carro. Se elas vierem, tudo bem”.

De língua rápida e sorriso fácil, a Dona Maria transmite facilmente simpatia. É, sem dúvida, uma mulher desenrascada. Perguntamos-lhe se se acha uma boa condutora, e responde-nos que prefere não o afirmar, porque há quem conduza melhor que eu. “É assim mesmo, os velhos são sempre mais atrasados. Mas vou-me desenrascando. Nunca tenho dificuldades. Acontece às vezes dar um arranhãozinho num carro, mas… bater de frente em ninguém, nunca bati. Mas já me bateram”, revela.

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Sobre o Dia da Mulher, perguntamos-lhe o que pensa da mentalidade feminina em Santa Cruz: serão hoje as mulheres mais progressistas? As a sua idade, opina, têm na sua maioria a ideia de que não devem trabalhar, de que os maridos é que devem fazê-lo. Agora, as raparigas novas é outra conversa. Elas e os rapazes aceitam-se muito melhor uns aos outros, porque já são todos da mesma idade, e de uma nova geração que vê as coisas com mais naturalidade, “e dá tudo certo”.

“Mas as pessoas de idade também não aceitam todas as coisas que as pessoas mais novas defendem”, admite. “Eu própria, tem coisas que eu não aceito. Acho que as mulheres devem ter os mesmos direitos que os homens, mas… dentro da normalidade. A trabalhar sim, devem ter os mesmos direitos. Agora, nem tudo o que um homem faz, uma mulher pode andar a fazer… Não fica bem! (risos)”.

E com esta partiu a nossa interlocutora Maria dos Santos Coelho para uma nova aventura rodoviária, que o telemóvel já tocava com mais um cliente que a chamava a solicitar um serviço… Ala que se faz tarde!