Em cada ano o mês de Março lança um desafio: O Dia da Mulher mantém-se numa reserva de particular interesse ao abrir à sociedade um largo espaço de opinião e acção em que se observa a condição feminina e se relevam os aspectos que ainda e sempre atingem negativamente a mulher, como um caso nunca completamente resolvido em termos de humanidade. Pesam sobre ela estranhos estigmas que o desenvolvimento civilizacional não consegue rasurar. Que porquês se instalam ou que agentes se movem para que tal possa acontecer ? Por exclusão de partes, sendo a sociedade constituída por homens e mulheres, ao distinguir-se a mulher como paciente, implicitamente estará o homem na origem das causas que a molestam ? Não quero no entanto servir-me duma acusação para defender um direito. Esta área pertence a capítulos muito especiais inerentes à Política e às várias disciplinas das Ciências Sociais que estão fora do meu alcance.
Escolho então um capítulo que me está mais próximo e tem a Educação como o polo onde se concentra todo o potencial que elevará a consciência à sua desejável dimensão. O termo Educação é um lugar comum em que se põe o dedo para dizer que está nela todo o nosso futuro. Mas a verdade é que pressinto, nos ideais de quem a proclama, mais os êxitos em termos de carreiras profissionais, prósperas e lucrativas, do que em termos de construção de personalidades e de seres íntegros, afectivos, promotores de cordialidade e de paz.
Há um incidente cuja memória me acompanha e de que me sirvo, sempre que à conversa surgem preocupações educativas: Em determinado momento alguém declinou uma frase crucial que, fora do contexto em que foi pronunciada, dita assim descarnada e inconsequente, pode levar temerariamente a indesejáveis interpretações. Eis a frase fria e metálica que me martela o ouvido: “As Universidades não precisam de cursos de caneta e papel mas sim de disciplinas de caracter tecnológico” ( porque essas, sim, seriam os necessários suportes do futuro ).
Admito que o autor desta frase não pretendesse destruir qualquer conteúdo de experiência ou conhecimento, mas ter-se-há esquecido de pronunciar uma palavra controversa, no entanto, de etimologia elucidativa: Humanidade. Esta palavra comporta uma carga preciosa de significados e valores a que raramente a associamos e sobre ela se abre um universo de conotações que nos leva a ponderar sobre a desejável dimensão dos humanos, a ultrapassar os limites da superficialidade e a superar as demandas imediatas da sobrevivência.
A palavra humanidade advém do latim húmus e dá origem aos vocábulos humildade e homem ( na referência do homo sapiens ). Ela designa o eterno vínculo que o homem mantém com a terra, embrião e feto, atavismo e sepultura. Recorda-nos, por oposição à soberba, ao despotismo, à luxúria e à ostentação, a nossa condição de fragilidade, desgaste, envelhecimento e morte, e promove um valor sublime, uma virtude suprema: a humildade. De acordo com o étimo húmus, humanidade comporta a ideia de solo fértil e produtivo, exorta por isso ao aproveitamento do labor da terra, fonte de sustento e alimento, por conseguinte promotor de vida. Se nos detivermos na palavra humildade, depara-se-nos um conflito de significações que pode levar a algum desvirtuamento. Porém humildade não significa pobreza ou insignificância, submissão ou medo. Significa a recusa da prepotência, da mentira, da vaidade, da iconoclastia, atributos que inferiorizam a condição humana e a remetem para o exercício da arrogância, do abuso de poder, da hostilidade, da farsa, da usurpação desenfreada de bens comuns.
Retomo a expressão que me levou a estas considerações: caneta e papel. Compete-me realçar o que se oculta nesta metáfora, uma vez que, ao salientar os criadores da linguagem e do pensamento, estou a referi-me a uma educação assente em disciplinas base para a formação dos cérebros humanos, no sentido do conhecimento e do discernimento.
A Filosofia e a Literatura, a par da Psicologia da Sociologia e das Artes, são disciplinas chave que consideram o ser humano numa perspectiva de unidade integrada, enformando conteúdos que possibilitam desvendar as complexidades da sociedade humana, do aparelho psíquico e das suas criações. A literatura propõe o pensamento através da linguagem; a filosofia escalpeliza-o e propõe o discernimento. Se se pensa em considerar a tecnologia oposta à palavra incorre-se no perigo de menosprezar a raíz etimológica onde se descobre a techné grega que combina a destreza e a arte com o logos (a palavra ) e concilia as duas realidades. Heródoto define a techné como “o saber fazer de forma eficaz”; Aristóteles considera-a superior à experiência e inferior ao raciocínio. Poderemos então concluir que o pensar e o sentir expressos pela linguagem, comportam, através da Literatura, um material indispensável para realizar a verdadeira Educação. Que utilidade tem então a Literatura, que paixão é esta que leva os utilizadores da caneta e papel a transformar o Universo em palavras significativas, a rondar a alma, como quem deseja descobrir a matéria de que se fazem os sentimentos e os sonhos, que são esteio da existência e fundamento da vida ? Cabe aqui dizer que a matéria precisa do espírito para que se constitua a Humanidade.
Faz falta à secura dos dias rotineiros, ao embate com as horas agressivas e desgastantes das nossas ocupações obrigatórias, um momento de introspecção construtiva. Uma leitura de carácter emotivo ou reflexivo pode fazer recuperar a nossa sensibilidade esgotada, tornada em matéria bruta e devolver-lhe a boa consciência do ser, a lucidez para discernir sobre os próprios comportamentos e formas de agir.
Penso ter chegado ao que, no decorrer deste raciocínio, se relaciona com o tema que este dia 8 de Março nos coloca para reflexão. Porquê os desvios que impõem à mulher os malefícios que a marcam como frágil e indefesa paciente de uma condição menor, sujeita a maus tratos, violências, desprezos que cada dia mais se acentuam ? Há, sem dúvida, na origem da desconstrução ou mal formação do carácter uma falta de contacto com leituras e visões que denunciem criticamente as imagens perversas que o mundo a toda a hora nos faz chegar através dos mais variados meios de informação e comunicação, que usando inevitavelmente as tecnologias modernas muitas vezes o fazem de forma abusivamente invasora. Ao pôr o dedo sobre a Educação acentuo o valor da metáfora caneta e papel como um dos caminhos úteis à reflexão sobre o descalabro que uma sociedade doente pode desencadear. Para mal de todos nós estamos actualmente no meio duma temível epidemia. Se há escritores malditos, há sobretudo leitores desinformados. Se há imagens malditas há com certeza expectadores desavisados. Quem pensa e escreve prescreve a si próprio essa espécie de cura que acelera a lucidez e permite um contínuo alerta, uma permanente vigilância, uma faculdade de preocupar-se, revolucionando a indiferença e a alienação sobre as patologias da alma que nos atingem . Penso nas mulheres que se vêem privadas de afecto e de cuidados generalizados, atingidas na liberdade e na dignidade, desrespeitadas nas suas diferenças, espezinhadas nos seus legítimos anseios, abandonadas ao terror do desamparo, ignoradas nas suas vidas de luta e dedicação às causas familiares; penso no estado do mundo, no desenfreado desenvolvimento, não acompanhado do diagnóstico das suas implicações . É necessário que os jovens ao deterem nas mãos os destinos dos países, não se recusem a acolher a experiência veiculada pelas disciplinas de caneta e papel tomada como metáfora das HUMANIDADES, disciplinas tão necessárias quanto as áreas tecnológicas, instrumentos integrantes propícios à visão holística do ser humano.
A frase infeliz que sempre me persegue assume um caracter de alerta e nem ela supõe a carga que representa e o poder de insinuação que comporta. Teremos que cuidar da palavra para perceber a diferença entre a palavra que mata e a palavra que salva. A sociedade não pode rejeitar a responsabilidade sobre a educação, nem subestimar os actos de correlação que integra cada um dos seus elementos nos grupos que a envolvem. Entender as obras literárias e da arte em geral como instrumentos de intervenção será promissor para uma educação afectiva que crie personalidades sadias e exemplarmente actuantes.
Ao currículo das escolas e universidades falta considerar a recuperação de algumas disciplinas e incentivar a continuidade daquelas que, constituindo as HUMANIDADES, poderão reencontrar valores perdidos essenciais ao crescimento harmónico dos cérebros humanos, tornando-os fecundos e permeáveis à universalidade dos saberes. Valiosos contributos para a transformação e evolução mental dos países, submetidos ainda a cruéis atavismos.