A tragédia no centro da cidade

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20 de Fevereiro de 2010. Uma data fatídica, da qual, porém, parece que muitos já se esqueceram. Talvez porque incomoda, ou porque convém. Ou porque é mais confortável pensar que o que aconteceu então, não acontecerá outra vez. Ou que, se tiver mesmo de ser, talvez só aconteça daqui a duzentos anos.

No dia 20 de Fevereiro de 2010, muita gente acordou com a chuva. Com a chuva em excesso. Morador no centro do Funchal, o jornalista autor deste artigo foi um deles. A princípio, o ruído da chuva era agradável. Depois, começou a tornar-se notado. Era demasiado intenso, demasiado contínuo.

Um olhar pelas janelas tornou claro que a rua se alagava. Nada de extraordinário. O sistema de escoamento de águas da cidade não é dos melhores.

Mas depois a rua foi-se alagando mais. E mais. E mais. Até que a coisa deixou de ter graça. A água começava a entrar por baixo da porta da rua. A casa ficava entre duas ribeiras, a de Santa Luzia e a de João Gomes. Felizmente, não nas proximidades imediatas de nenhuma delas. E mesmo assim a rua alagava. A água, carregada de lama, começou a inundar as caves. Chegou à altura do primeiro degrau que conduzia ao interior da casa. Felizmente, o primeiro piso era elevado em relação à rua. E assim, a “desgraça” do jornalista ficou pelas caves inundadas. A residência não ficou afectada, como outras que veria em breve.

Era um sábado, e eu estava de folga. Um telefonema para o jornal onde então trabalhava desvendou uma realidade bem pior. Não saias de casa, foi a advertência. As coisas estão muito más.

Da Rua Fernão de Ornelas, da Rua do Ribeirinho, da Rua do Seminário, começaram a afluir, para a cota mais elevada em que me encontrava, pessoas assustadas. Funcionárias do supermercado Anadia. Profissionais de lojas, outros seres humanos não identificáveis pela roupa ou pelas conversas, que reflectiam o estado de espírito: amedrontados, a sentirem-se indefesos, a falarem de uma grande enxurrada que invadia estabelecimentos e casas.

Começaram a aparecer as autoridades. Polícia. Bombeiros. Protecção Civil. Posteriormente, mesmo os camiões do exército, com um oficial a dirigir a caravana que mais tarde havia de tornar-se meu amigo. Entraram com os camiões em contramão pela Rua João de Deus, passaram pela Escola Francisco Franco e dirigiram-se ao Campo da Barca. Minutos depois, tiveram de recuar em marcha à ré. Por ali, não dava. No Campo da Barca as cheias da ribeira tinham atingido severamente a bomba de gasolina ali existente. Um depósito de gás fora aos tombos pela ribeira abaixo, entre o Centro Comercial Oudinot e o Anadia Shopping.

No desespero de fazer alguma coisa, eu e minha esposa agarráramos em enxadas de jardinagem e tentávamos desentupir as adufas, para fazer a água escorrer mais livremente frente à minha casa. Em vão. A água continuava a subir, embora mais facilmente começasse a escoar. Mas não nos livrávamos de ver água a entrar pela residência.

As autoridades pareciam confusas. Pouco operantes. Todos pareciam apanhados de surpresa. Os nossos pés e roupas estavam encharcados.

Nesse dia, disseram-me que não fosse trabalhar. Não valia a pena. Andáva-se de bote de borracha em frente ao Diário de Notícias. Os profissionais da comunicação entravam no jornal com água pela cintura ou mais e, no interior da redacção, espremiam e arregaçavam as pernas das calças e andavam descalços. Quem trabalhou nesse dia, e cobriu os acontecimentos, certamente não os esqueceu. E deu exemplo notável de profissionalismo. Daquele que dificilmente é reconhecido, quer pelo público, quer pelos seus próprios superiores, quer mesmo pelos seus pares.

Eu também atolei as pernas em lama, até acima dos tornozelos, mas fi-lo já no rescaldo da tragédia, nas zonas altas do Caniço. Ali fui entrevistar pessoas e testemunhar no local a maneira como os habitantes tinham sido afectados pela tragédia. Levei o meu próprio carro, que ficou sujíssimo por dentro e levou semanas para limpar convenientemente. Mas isso não era nada comparado com a miséria que acometera outras famílias. A ribeira transbordara e entrara com toda a violência da natureza em fúria pelas casas adentro. Destruíra tudo na sua passagem. Vi coisas surrealistas. Automóveis que pareciam ter sido amachucados como folhas de papel entre as mãos de um gigante. Atirados para cima de pequenas elevações, como bolas de basquetebol, em posições improváveis. Estava ali o testemunho inigualável de forças que nos transcendem.

Entretanto, na minha própria casa, nem água, nem luz. Foi a necessária busca ao pequeno supermercado Sá, ao pé da Sé, para comprar mantimentos e água engarrafada. As notícias obtidas apenas através de um rádio transístor. Os estragos visíveis pelo caminho. O ainda enorme caudal da ribeira. Os telemóveis inúteis.

E o desespero, pelo caminho, nos olhares das pessoas.

Mais tarde, tomei a meu cargo a reportagem sobre a forma como as infraestruturas culturais tinham sido afectadas pelo temporal. A visita ao Teatro Municipal, a belíssima sala de espectáculos funchalense. Atolada de lama como num mau filme-catástrofe. Com peças ainda flutuar, numa escuridão onde era impossível fotografar como devia ser. As cadeiras danificadas. A inundação no espaço sob o palco, onde tanta coisa se encontrava guardada. Ali perto, a biblioteca Mário Barbeito de Vasconcelos, com um espólio único, irremediavelmente destruído, por se encontrar numa zona subterrânea. Ironicamente, ali encontravam-se registos únicos de uma aluvião que, no passado, lançara o terror na Madeira. Perdidos, juntamente com outros documentos importantes, para desânimo do seu proprietário e de vários historiadores.

Não muito longe, o núcleo museológico dos açúcares, na Praça de Colombo: outro espaço situado abaixo do chão, inundado. Peças que antes estavam em exposição a boiarem, a estragarem-se, a perderem o seu valor histórico e patrimonial, em cacos.

Notícias em cima de notícias, cada uma pior que as outras. Comércio a sofrer severos danos. Residências inundadas. Desalojados a serem recebidos pelos militares, no RG3. Mortos. Desaparecidos. O resultado combinado da incúria, do desprezo pelos alertas dos ecologistas e críticos das obras desenfreadas na proximidade das ribeiras e a imprevisível fúria da natureza. Tudo se combinou numa fatalidade sem nome.

O pior veio-se a saber ainda depois. Houve quem não voltasse. Houve quem morresse soterrado sob a lama que inundou o automóvel em que viajava. E, nos meses subsequentes, a presença da tragédia. Toda a gente conhecia uma vítima. Ou alguém que tinha sofrido na pele as consequências, que carregaria as marcas. Num café que costumava frequentar, uma rapariga muito simpática, sempre amável para a minha filha, parecia pálida certo dia. Tentámos falar com ela, não reagiu lá muito. Estranhámos. Depois uma colega dela disse: Ela ainda não está bem. A mãe dela morreu há tempos. Foi arrastada pela ribeira abaixo. Encolhemo-nos, quase que envergonhados. O que dizer, perante algo assim. Todas as palavras são vãs.

E depois, depois de tudo isto, as palavras cínicas dos políticos. A criticarem o “aproveitamento”. Sim, porque eles não tiveram culpa de nada. A culpa foi da “Mãe Natureza”. E morre solteira. Não houve negligência. Não houve incompetência em disciplinar situações que toda a gente, com dois dedos de testa, sabia que contribuíram para isto. Os críticos, os que tinham alertado, ainda foram apodados de profetas da desgraça, e de se comprazerem na tragédia alheia, porque lhes podia permitir dizer que tinham razão. E mesmo assim, esses críticos mostraram-se contidos, na hora da desgraça. Mas os senhores de fato e gravata, salvo uma ou outra excepção, não se destacaram pela grande solidariedade com as pessoas simples que perderam a casa ou o negócio. Mais tarde preferiram gastar verbas da Lei de Meios noutras coisas mais “importantes”, como a espampanante frente de mar do Funchal. O reino dos tetrápodes. Nas ribeiras juntas contra opiniões autorizadas. Os projectos entregues a quem já se distinguira pelas asneiras praticadas na Marina do Lugar de Baixo. Quem os ouvisse, quando acossados pelas críticas, pareciam ter sido eles mesmos as vítimas.

Eu só me lembro das histórias que depois me chegaram ao conhecimento. E da subtil tristeza, habilmente disfarçada, daquela empregada de café, sempre tão simpática mas nesse dia taciturna. “A mãe dela morreu. Foi pela ribeira abaixo”.

Passados alguns anos, parece que nada aconteceu. Voltámos ao mesmo quotidiano asfixiante. As pessoas ainda comentam algo nos cafés. Mas estão preocupadas com o imediato. Debatem as ridículas peripécias de uma oportunidade de alternância política que parece destinada a não acontecer. Debatem o fracasso autárquico de uma mudança que não chegou a ser. Discutem o que muda. E, quanto mais as coisas mudam, mais ficam na mesma.

Eu não sofri o 20 de Fevereiro. Não cheguei sequer a trabalhar, jornalisticamente, nesse dia. Só mais tarde. Mas era morador no centro e vi de perto as consequências. Vi os automóveis completamente cobertos de pedras na rua do Carmo. E vi os efeitos do drama ainda mais claramente mais tarde, no olhar dos familiares dos mortos.

Não se esqueçam já desta data. Não foi há tanto tempo assim.

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